domingo, 29 de dezembro de 2019

Leonardo da Vinci (1452-1519)

Da Vinci era apenas 7 anos mais novo do que Botticelli. Mas a sua pintura pertence a outro continente. Porque pertence a outro século. E continuo a seguir este percurso meu, do ideal feminino na pintura.
Leonardo pintou quatro retratos femininos, um deles o mais famoso de todos. Mas não vamos por aí.
A minha preferência vai para um retrato dentro dum quadro de composição, a Santa Ana do quadro "Santa Ana, a Virgem e o Menino", dito o quadro preferido de Leonardo. Ele lá saberia porquê. Que eu conheça é a única Santa Ana - lindíssima mulher - que, por entre o sfumato de Leonardo, sorri com a cara toda para o neto, um menino-Deus, como todos são.

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O "Retrato de Mulher com Arminho" apresenta-nos a amante Cecília Gallerani, de Ludovico Sforza, de 17 anos, e que teria um filho dele com 18. O importante aqui é a força do olhar, o sorriso curto e medido, a rotação decidida e atenta do pescoço, a mão esguia e tão moderna. Existem várias interpretações para a presença do arminho. Cecília Gallerani foi efectivamente uma jovem muito interessante, poetisa, protectora de artistas, sobrevivendo com rendas à sua desafectação do protectorado do Sforza.


E volto à Urgência.

Sexta-feira fiz consulta, muitas aliás. Não me vanglorio disso, algumas são um seguimento suave de doentes que migrei da consulta de avêcê, por simpatia, consultas "fáceis" portanto, pelo menos enquanto eles não envelhecem mais.
 
Seria a consulta dez. A D. Emília tem noventa e cinco anos, perdeu fluência na fala por um avêcê e tem um coração muito fraquinho. Por arritmia está hipocoagulada. Nos últimos dois meses dois internamentos por esse mito da medicina moderna, a "nsuficiência cardiorrespiratória precipitada por infecção". Vinha a D. Emília numa cadeira de rodas empurrada pela filha, sem dispneia aparente, secos os edemas das pernas. A filha referiu-me logo ao que vinha: "Ó doutor, eu daqui se calhar vou levá-la à urgência, dói-lhe ali um joanete!" Que doía, efectivamente, que doía. Com algum esforço consegui convencê-la a seguir a minha prescrição de AINE em dose única diária em ração curta de dias, receoso eu por um rim que só sobrevive a chicote de furosemida e a evitar a viagem adicional…
 
Seria o intervalo entre a 13 e a 14. Dirigia-me a uma daquelas máquinas que nos vendem café mau, uma senhora já de idade acercou-se: "O senhor doutor desculpe, eu queria saber o caminho para a urgência." "Porquê, minha senhora?" "Não estou a ver bem deste olho, não sei o que tenho, e o meu médico da cabeça disse-me - "já que cá está aproveite e passe pela urgência - como vou para lá?" À vista minha (muito) desarmada o olho parecia-me bem. E a senhora não sabia especificar melhor as queixas. "Já tentou lavar um pouco o olho com água, com soro?" - tentei eu remendar a preguiça recomendatória do colega da cabeça. "Eu, eu não, mas não sei, não vejo bem, eu queria ir à urgência mas por fora é muito longe.." Tentei a partir daqui explicar à senhora que epistemologicamente é impossível entrar num serviço de urgência "por dentro", pelo que ela teria obrigatoriamente de "sair" para voltar a entrar, desse por onde desse. Os meus dotes de oratória resultaram em nada porque a seguir ela perguntou-me onde era o refeitório, porque o melhor se calhar, era comer qualquer coisa primeiro e só depois, sim, mas sempre "por dentro", ir à urgência…
"Minha senhora, sendo assim dirija-se aquele segurança - "qual, não o vejo…" - ele é baixinho mas daqui a nada já o vê e ele orienta-a como eu não consegui, não consigo e não conseguirei!"
 
Sim, sim, isto das Urgências obriga mesmo a uma Especialidade nova...

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Forbidden Christmas or Forbidden Radio?

Um destes dias ia a conduzir enquanto ouvia a recém-constituida Rádio Observador e calharam de falar de canções "alternativas" de Natal numa rúbrica imaginativamente chamada de — "Isto não passa na rádio". A canção escolhida foi não o "Merry Christmas Mr Lawrence" do Ryuichi Sakamoto mas a versão cantada por David Sylvian, "Forbidden Colours".
Ora ignorantes não deviam fazer programas de rádio. "Forbidden Colours" acaba por não ser uma canção de Natal mas sim uma canção sobre um amor (homossexual) proibido. Por isso o filme não é assim tão parecido com a "Ponte Sobre o Rio Kwai", meus amigos. E confessar que "agora não me lembro se o Sakamoto entra no filme" quando o foco do mesmo é a atracção entre este (ou o seu personagem) e o personagem representado por David Bowie é não servir quem ouve. Ide para casa ouvir ou ler ou nada disso. Mas ide. A boa rádio pede saber. Uma coisa é que o filme em causa, de Nagisa Oshima, tenha possivelmente envelhecido mal. Vi-o na Sala Bebé numa esquina da primeira fila, casa cheia... Outra coisa é falar sem saber do que se fala e... siga como se nada! 

 

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Sandro Botticelli (1445-1510)

Acusado de não ser revolucionário como outros antes dele no quattrocento e de a sua pintura apenas ser decorativa (um erro), só posso dizer que, o passo dado por Botticelli como sequência e fim do século define o ideal feminino número dois, depois de Piero della Francesca.
Porque estas mulheres já sabem de si o valor Maior, a luz, a força que um traço perfeito permite. E são mulheres com um plano. Elas ultrapassam-nos e sabem-no.

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O Nascimento de Vénus - 1485-6

A Primavera (pormenor) - 1477-82

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Esta mulher, que dizem ser a Deusa Flora, nascida do suspiro fecundante de Zéfiro sobre a ninfa Clóris, tem um desenho no quadro que poderá sugerir uma gravidez. Há quem duvide. Mas duvida quem não olha para a cara desta mulher. As grávidas ainda são as mais sábias das mulheres.

Piero della Francesca (1415-1492)

Porque gosto de Piero della Francesca? Não é pelo seu uso justo da perspectiva, já presente em Masaccio, ou da cor.
É que Piero della Francesca fornece uma galeria de retratos única, onde personagens como que suspensos de um tempo quase fotográfico são apanhados no desenho perfeito do pintor. Eles, mas sobretudo elas. O primeiro ideal feminino da pintura foi inventado por Piero della Francesca. Mulheres surpreendidas pela sua própria beleza, suspensas num tempo tão antigo, possuidoras de um segredo de elas próprias oculto, mulheres sem um plano.

Resultado de imagem para piero della francesca obrasPala di Brera - 1472.

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Madonna di Senigallia- 1474.
Ela segura a mais importante das crianças. E o peso de segurar a mais importante das crianças mede-se no lábio inferior, ligeiramente ofendido, nos olhos oblíquos, um pouco toldados. A jovem Maria é também pouco mais do que uma criança. Saberá ela a extensão completa do que lhe foi entregue? Não me parece ser essa a interpretação de Piero Della Francesca. Uma mulher, uma recém-mulher, sem um plano.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Masaccio (1401-28)

"Masaccio" era o apelido jocoso de um pintor florentino e significava mais ou menos "o Tomás desajeitado", no sentido de só viver para a pintura e não se preocupar com nada mais. Por contraste, um seu contemporâneo e companheiro de encomenda era conhecido como "Masolino", "o pequeno Tomás". Masaccio, dezoito anos mais novo que Masolino, é difícil dizer quem terá sido mestre de quem. Masolino entrou na guilda dos pintores de Florença um ano depois de Masaccio... e há quem diga que "Masaccio" queria dizer apenas "o grande Tomás", dada a reconhecida maior qualidade da obra do mais novo...

Porque escolho Masaccio? Pela justeza do retrato? Pela perspectiva perfeita? Pelo uso da cor para acentuar dramatismos? Porque para mim a pintura de Masaccio é, pela primeira vez, Maior! Maior do que a própria Vida, amplificando-a e a nós, que a vemos estarrecidos!
Masaccio é o meu primeiro pintor escolhido, portanto.

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Este quadro chama-se "O dinheiro do tributo" e ilustra uma passagem do Evangelho de Mateus. Cristo manda Pedro recolher a moeda do tributo da boca de um peixe recém-pescado (canto inferior esquerdo) e dar a mesma ao representante das autoridades (à direita). Este enorme quadro, cuja pintura a fresco está deteriorada, é como uma tira de BD. O que sobrevive das cores, da perspectiva, do envolvimento, é perfeito.

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A face de Pedro é o retrato exacto de um pescador a tentar aprender "a palavra nova". Será o primeiro bispo de Roma.

Os Meus Pintores - uma introdução.

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Eu já escrevi sobre isto, sobre como a minha aprendizagem da pintura ocidental se fez à custa de um livrinho da velha Biblioteca RTP chamado "Cem Obras-Primas da Pintura Europeia". Também já contei como o fascínio por um quadro que me parecia tão mal pintado e que pertencia a um tal de Paul Klee me enviou numa demanda que terminou no meu actual fascínio/obsessão por Klee, e que condicionou, porque Klee é sobretudo luz e cor, as minhas preferências em pintura.
Por isso aqui vão os "meus" pintores, poucos fora do cânone aplicado pelo metódico livrinho da Verbo/RTP, se excluirmos os últimos oitenta-noventa anos, não abrangidos na escolha de lá.

A começar, parando em Manet.



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Paul Klee, By The Nile, 1939.







 

sábado, 7 de dezembro de 2019

A Medicina de Emergência.

Não sei se neste momento valerá a pena emitir uma opinião sobre o implementar de uma nova especialidade em Portugal, a Medicina de Emergência, "porque já existe em dezenas de outros países" e "porque isto das urgências não vejo como se resolva de outra forma!". Ela vai acontecer, pelas duas razões acima, é uma questão de cansaço e de tempo.
 
Gostaria só de chamar à atenção que o criar de uma nova especialidade não deve nascer da nossa preguiça enquanto sociedade ou serviço (nacional de saúde) em conseguir retirar dos serviços de urgência o terço de doentes que não devia recorrer aos serviços de urgência (SU). Um terço significa descer de eg 600 doentes dia para 400 doentes dia, por exemplo.
Afinal de contas o problema dos SU é médicos a menos (na urgência) e doentes a mais (na urgência), certo? Uma nova especialidade implica que existe neste momento em Portugal e nos SU um vazio de saber especializado específico que essa nova especialidade vem preencher. Existe esse vazio? Não me parece. A panóplia de doentes que recorre ao SU tem graus de gravidade muito diferentes. O doente mais grave é no geral bem atendido. Não o é apenas e só quando - por excesso de doentes e/ou sobrecarga horária - o crivo de atendimento falha. As queixas maiores sobre o SU são habitualmente dos doente menos graves - os que, literalmente, "se podem queixar". Esta é uma verdade crua mas real. Metade destes são para não ir ao SU.
 
Preciso de fazer a minha declaração de conflito de interesses: fiz urgência semanal ou (mais frequentemente) bi-semanal num Hospital Central dito "fim-de-linha" durante 17 anos. E admiro, pela persistência e estoicidade, quem hoje faz SU. Na urgência conto amigos e não poucos.
 
Mas a solução dos serviços de urgência deste país é a criação da Medicina de Emergência?