domingo, 29 de dezembro de 2019

E volto à Urgência.

Sexta-feira fiz consulta, muitas aliás. Não me vanglorio disso, algumas são um seguimento suave de doentes que migrei da consulta de avêcê, por simpatia, consultas "fáceis" portanto, pelo menos enquanto eles não envelhecem mais.
 
Seria a consulta dez. A D. Emília tem noventa e cinco anos, perdeu fluência na fala por um avêcê e tem um coração muito fraquinho. Por arritmia está hipocoagulada. Nos últimos dois meses dois internamentos por esse mito da medicina moderna, a "nsuficiência cardiorrespiratória precipitada por infecção". Vinha a D. Emília numa cadeira de rodas empurrada pela filha, sem dispneia aparente, secos os edemas das pernas. A filha referiu-me logo ao que vinha: "Ó doutor, eu daqui se calhar vou levá-la à urgência, dói-lhe ali um joanete!" Que doía, efectivamente, que doía. Com algum esforço consegui convencê-la a seguir a minha prescrição de AINE em dose única diária em ração curta de dias, receoso eu por um rim que só sobrevive a chicote de furosemida e a evitar a viagem adicional…
 
Seria o intervalo entre a 13 e a 14. Dirigia-me a uma daquelas máquinas que nos vendem café mau, uma senhora já de idade acercou-se: "O senhor doutor desculpe, eu queria saber o caminho para a urgência." "Porquê, minha senhora?" "Não estou a ver bem deste olho, não sei o que tenho, e o meu médico da cabeça disse-me - "já que cá está aproveite e passe pela urgência - como vou para lá?" À vista minha (muito) desarmada o olho parecia-me bem. E a senhora não sabia especificar melhor as queixas. "Já tentou lavar um pouco o olho com água, com soro?" - tentei eu remendar a preguiça recomendatória do colega da cabeça. "Eu, eu não, mas não sei, não vejo bem, eu queria ir à urgência mas por fora é muito longe.." Tentei a partir daqui explicar à senhora que epistemologicamente é impossível entrar num serviço de urgência "por dentro", pelo que ela teria obrigatoriamente de "sair" para voltar a entrar, desse por onde desse. Os meus dotes de oratória resultaram em nada porque a seguir ela perguntou-me onde era o refeitório, porque o melhor se calhar, era comer qualquer coisa primeiro e só depois, sim, mas sempre "por dentro", ir à urgência…
"Minha senhora, sendo assim dirija-se aquele segurança - "qual, não o vejo…" - ele é baixinho mas daqui a nada já o vê e ele orienta-a como eu não consegui, não consigo e não conseguirei!"
 
Sim, sim, isto das Urgências obriga mesmo a uma Especialidade nova...

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