domingo, 25 de abril de 2021

O 25 de Abril.

 Viva o 25 de Abril.

Apesar da desigualdade que grassa e permeia e pulula, resultado não do 25 de Abril mas do mundo que piora dia-a-dia.

Apesar do movimento dos capitães em parte ter nascido porque aconteceu o decreto 353/73 que alterava as carreiras militares.

Apesar do deserto ideológico de hoje onde governa um partido que não é socialista - o que é hoje o socialismo? - apoiado intermitentemente por um partido que se diz comunista - o que é hoje  o comunismo? - e outro que é de esquerda. Mas o que é hoje ser de esquerda? Dizem e bem que a esquerda "morreu quando deixou de defender as igualdades e passou a defender as identidades"...

Apesar do país manso e adormecido que entretanto assim cresceu, prisoneiro dos horários e agora do teletrabalho e do crédito à porta parado a bater a bater. Do país que se vira as costas a si mesmo. Este país real, como real é toda e qualquer pessoa que no novo censo vai ser contada. Mas bem sabemos como hoje é tão difícil VIVER!

Há muito que a guerra por uma sociedade mais JUSTA abandonou as dicotomias de 74, 75 e 76. Os inimigos são outros. Entram-nos pela casa dentro pelo computador, compram-nos a alma através de um telemóvel. 

Os desafios das igualdades são hoje terríveis, como sempre foram. A desigualdade na justiça persiste. A desigualdade na educação agrava-se e vai piorar. A desigualdade na saúde acalmou um pouco graças à pandemia. A desigualdade no tempo, no lazer, no poder abrir os olhos e ter uma visão limpa e com as melhores cores do mundo está aí é é o dia-a-dia da grande maioria.

Nada disto tem a ver já com o 25 de Abril, data bem longínqua, 47 anos contando bem, mas sim com o mundo mudado que nos aconteceu, começando nos vis anos oitenta e seguindo pela crise de 2009 que, curiosamente, se auto-sustentou e ligitimou, é só corrigir a trajectória...

Se comemoro o 25 de Abril? Sim, claro que sim. Porque se ainda vivêssemos em ditadura eu não podia estar aqui a escrever e menos ainda a publicar isto. E é só isto,  sem mais. E é bastante. 

Maa eu sei a reserva mental de muitos quando gritam "Viva o 25 de Abril!"...


sábado, 10 de abril de 2021

Do Colonialismo - 2.



Gomes Eanes de Zurara descreve na "Crónica da Guiné" uma das primeiras (senão a primeira das) vendas de escravos no continente europeu, acontecida em Lagos e presidida pelo Infante D.Henrique, que ficou com um quinto dos vendidos. A venda aconteceu no mercado de escravos de Lagos, hoje um Núcleo Museológico nomeado pela UNESCO como "celebrando a dignidade humana"

Num quadro anónimo e que se tornou muito conhecido na exposição "Lisboa, Cidade Global", e que mostra cenas do quotidiano na zona do Chafariz d'El-Rei em Lisboa no séc. XVI, aparece um negro a cavalo com o hábito da Ordem de Santiago. Exemplo da multiculturalidade e tolerância da Lisboa de então? Não senhor, era caso único, era João de Sá, o Panasco, bobo de D.João III alforriado e promovido ao dito hábito.

O descobrir da costa ocidental africana teve um objectivo comercial e de empresa, e um dos produtos obtidos e comerciados, portanto ainda no século XV, foram escravos. Houve escravos a cultivar terras em Portugal e a cultura da cana-do-açucar na Madeira, num ensaio do que iria acontecer no Brasil, usou abundantemente a mão-de-obra escrava. A escravatura nos séculos XV-XVI era pensada de uma forma bastante diferente. A escravatura não era só negra mas também mourisca e, a partir do século XVI, asiática. Camões terá tido a sua "Bárbara Escrava". Em Portugal Continental terão existido, até a sua abolição - no Continente - pelo Marquês de Pombal, algumas centenas de milhar de escravos. Talvez Pombal se tenha inspirado no Code Noir do ministro Colbert, que em 1685 tinha reafirmado que "Tout esclave qui met le pied sur le sol do royaume ( français ) est libre".Nas colónias das Antilhas Francesas a história era outra... Mas a abolição do Marquês de Pombal da escravatura foi "de novo", não emancipou ninguém. Complementou-a com uma "Lei de Ventre Livre" para os filhos de escravos já nascerem livres. Depois da independência do Brasil (1822) muitos portugueses vieram para a metrópole e tiveram isenção por lei de emancipação dos escravos que trouxeram.

Quem hoje pensa Portugal como um país que aconteceu "com" escravos? E, porém, foi isto algo mais do que um mal de um determinado tempo? Ou apenas isso, um exotismo português, um país que foi deixando de ser bem bem europeu com o correr dos séculos e assim se foi deixando ficar, diferente, vagamente tropical, disfarçado de rico porque com escravos, até o Marquês de Pombal nos desmascarar? Já o Padre António Vieira nos tinha chamado "os cafres da Europa", atrasados, incultos, um comentário racista, claro, mas enquadrável… no tempo em que escreveu. O Padre António Vieira que defendeu com unhas e dentes a liberdade dos índios aceitando a escravatura negra como um mal - afirmando que o era - mas necessário. Abandonando o corpo dos negros, os "filhos de Caím", à escravatura, queria resgatar as suas almas. O Padre António Vieira, um dos maiores prosadores em português de sempre e que era neto de mulata e bisneto de africana cativa e trazida para Portugal.



quarta-feira, 7 de abril de 2021

Segunda Nota Sobre o Meu Pai

 A melhor coisa que te aconteceu foi ficares desempregado. Não vou elaborar sobre como ficaste desempregado. 

Foi um processo lento. Bastantes anos depois e muito trabalho depois, porque trabalhaste "clandestino" muitos anos, a tua vida ganhou um equilíbrio entre as coisas que tu fazias fora de casa, compras, trabalho ou apenas dares um giro, com os teus compromissos em casa, onde a Mãe ainda muito tempo trabalhou como "mestra", depois não, ficando um pouco "vazia", mais vulnerável. Foi aqui que, tarde embora e em circunstâncias que tu pouco controlavas, tu foste timoneiro. A casa eras tu que a fazias andar para a frente.

Em 2010, quando me separei, procurei-te primeiro a ti. Encontrámo-nos, cúmplices, nas traseiras da biblioteca. Menti-te quando tentaste adivinhar o porquê. Preparámos a notícia. Correu bem. 

Finalmente via eu em ti uma vida correcta, Quando ia a Ovar era para estar contigo. Falava contigo. À Mãe apenas retorquia, a minha conversa com ela ainda por recomeçar.

Não que em Ovar nos acontecessem grandes conversas. Nunca foi assim. Dois jovens animais, um dos quais tua neta, ocupavam toda a atenção e tempo.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Primeira Nota Sobre o Meu Pai

Onde foi que tu, mentindo, desapareceste num passeio do outro lado da rua, fumando? Terias prometido parar, eu estava com a Mãe e ela não se conteve, vámos os dois o fumo, adivinhávamos o suspiro de alívio, o prazer recuperado.  

Cheguei a contar-te os cigarros, fiz gráficos, a Mãe a perguntar-me, fumavas pelo menos meio maço sempre.

A explicação "outros tempos" serve para tanta coisa. A Mãe casou contigo sem saber que fumavas. Ou tu prometeste parar e não paraste. Mentiste. A Mãe descobriu os restos, as priscas, e foi informada por um qualquer elemento menor neste enredo: na trabalho tu fumavas. Acontecia tu fumares na fábrica que tinha sido do pai dela, como não chegar a saber?

Havia aquele cinzeiro de pé alto na sala ao lado do teu maple. Em que fase da nossa vida te sentavas ali? Sentavas-te ali ao fim da tarde? Lendo o jornal? Penso agora que da nossa biblioteca - e onde uma parte minoritária mas importante dos livros eram teus - nunca te vi folhear um livro. Esperaste sentado que te chamassem para jantar resgatado por um cigarro pensativo? Sim, porque lembro-me UMA VEZ de ter conversado contigo sentado no tal maple. Uma só. 

Paraste de fumar quando obedeceste a uma indicação médica alheia. Sem mais. Então fumavas já menos. Trabalhavas aos recados numa garagem e distribuidora de gás, fazias um pouco de tudo, a capa caída pelos revezes da vida, já sem a prosápia de quem ao menos galo era das portas de sua casa para dentro. Paraste, ponto.. 



domingo, 4 de abril de 2021

Do Racismo - 1.

 



O tema tem circulado nos jornais, nas televisões e nas redes sociais: há racismo estrutural em Portugal? 

Tendo a pensar que não. Que a transição aconteceu aproximadamente na minha geração. Que então nos mais novos nem pensar. Que nos mais velhos infelizmente.

Mas Portugal é estruturalmente racista. Com os ciganos. Que me desmente? Vamos ao teste da luva branca? Quem seria defendido por um advogado cigano (que os há), tratado por um médico cigano (que espero que os haja), quem entregaria a sua obra a um engenheiro cigano? A isto chama-se racismo estrutural, certo?

Mas, deixo a quem ler fazer o teste da luva branca substituindo no acima a palavra "cigano" por "negro" ou "chinês". Um médico chinês (que não dedicado a agulhas) ? Um advogado negro? Um engenheiro cigano? 

Uma engenheira mulher?



Do Colonialismo - 1.

 

 

Neil Young, no seu álbum "Zuma", de 1975, tem uma canção chamada "Cortez, The Killer". Nesta canção o canadiano Neil Young destrói o heroísmo do espanhol conquistador do Império Azteca. A fortuna espanhola baseou-se na fortuna destes aventureiros que, seguindo a rota aberta por Colombo, destruiram os dois grandes impérios "Americanos". A história das suas atrocidades, que eu até li em livros de "divulgação juvenil", tornal difícil promovê-los a heróis de quem quer que seja. E era assim que antigamente se fazia a divisão: nós os portugueses, descobrimos. Os espanhóis conquistaram. Hoje sabemos diferente. Sabemos?

O primeiro século - ou século e meio - da expansão ultramarina portuguesa começa com uma conquista, Ceuta. E termina com a união das coroas ibéricas. Quando ressurgimos independentes nos meados do século XVII a manutenção do Império no Oriente já era apenas uma lembrança fugaz do que tinha sido, as rotas comerciais tomadas pelos holandeses e pelos ingleses. Restava-nos o Brasil. E assim foi até este Brasil, qual jangada de pedra bem maior do que o país de origem e já ab initio encalhada noutro continente, se ter despedido de nós. Um Brasil que - por muito que doa aos brasileiros o eu dizê-lo - era ainda em 1822 uma gigantesca invenção portuguesa tropical. Só depois vieram os emigrantes de todos os lados, italianos, libaneses, alemães, japoneses, etc., etc.

Podia eu agora começar com o elogio desta invenção tropical portuguesa, o Brasil. Mas não. Portugal não teve um Hernán Cortés nem um Francisco Pizarro. Foi tendo pequenas réplicas destes durante três séculos. E assim quase extinguiu a população índia autóctone e, depois, dizimada esta pela perseguição e pela doença, importou milhões de escravos negros do continente africano. Primeiro e sempre foi o açúcar, depois o ouro, o café. Repete-se a frase nos livros sérios de história: o Brasil não teria acontecido sem a escravatura. Quantos escravos foram traficados para o Brasil? A parte mais considerável dos dez milhões que foram exportados de África (estimativa grosseira) durante três séculos. Quem os traficou? Numa elevada percentagem barcos portugueses. E aqui chegámos. Os nossos Pizarros e Cortes'es foram estes todos durante todo este tempo. Mais ainda: quem fez o Brasil em toda a sua extensão? Os bandeirantes. "Filhos em primeira e segunda geração de portugueses" (portanto portugueses) ou militares ou civis tresmalhados de várias outras nações, montavam as "bandeiras" para penetrar terra dentro, descobrir ouro e outros metais e mercadorias, escravizar e matar índios, recuperar ou matar escravos negros fugidos. O grosso das terras do interior do Brasil, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, vieram assim ter à Coroa Portuguesa. Afinal, olhando para o mapa da América do Sul, nós fizemos à metade direita, o Brasil, o que a Espanha fez à metade esquerda. Com a diferença que fomos mais eficazes a exterminar os índios e importamos muitos mais escravos negros.

O Brasil foi um feito, mas um terrível feito.