sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Revisão da matéria dada, ou seja, chegamos aos 146!

Antes de seguirmos em frente para os poetas nascidos nos setentas e oitentas, façamos um rappel a alguns nomes que esqueci e decidi chamar para arrendondar a escolha. Sim, estão aqui o Torga e o Gedeão.



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ANTÓNIO GEDEÃO (1906-1997)

O físico Rómulo de Carvalho, professor de liceu, historiador, divulgador científico, publicou o seu primeiro livro de poemas em 1956 com o pseudónimo acima, "Movimento Perpétuo", e a popularidade de muitos dos seus poemas assassinou para a posteridade o nome deste poeta. Falta uma análise desapaixonada e que antologie os poemas belos e desconhecidos que este indubitavelmente bom poeta escreveu.


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SUSPENSÃO COLOIDAL


Penso no ser poeta, e andar disperso
na voz de quem a não tem;
no pouco que há de mim em cada verso,
no muito que há de tudo e de ninguém.

Anda o cego a tocar La Violetera,
e eu a vê-lo e a cegar;
e a pobre da mulher esfregando e pondo a cera,
e eu a vê-la, e a esfregar

Que riso perto, que aflição distante,
que infíma débil, breve coisa nada,
iça, ao fundo, esta draga carburante,
rasga, revolve e asfalta a subterrânea estrada?

Postulados e leis e lemas e teoremas,
tudo o que afirma e fura e diz sim,
teorias, doutrinas e sistemas,
tudo se escapa ao autor dos meus poemas.
A ele, e a mim.



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MIGUEL TORGA (1907-1995)

Homem que passou pela "presença" mas que prezou sempre a sua independência. Trasmontano de perto de Vila Real, trabalhou na fazenda de café no Brasil de um familiar quando jovem, que depois lhe pagou o curso de Medicina em Coimbra. Uma espécie de Alexandre Herculano do século XX - nem de cara são assim tão diferentes. Depois do 25 de Abril apoiou Eanes, recebeu Camões e depois foi algo esquecido. Na sua geração não se pode comparar com Nemésio mas a sua poesia, convencional mas inteira, atinge por vezes bem o alvo. Também bom contista e escreveu e publicou um desigual Diário durante mais de 50 anos. Claro que sabemos que o nome acima é o pseudónimo de Adolfo Rocha, Médico de Clínica Geral e Otorrinolaringologista. Casou para a vida com uma aluna belga de Vitorino Nemésio, depois professora de Letras em Lisboa, Andrée Crabbé Rocha, que o traduziu para o francês. Vasco Graça Moura foi, por tempos, seu genro. 


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SÚPLICA


Agora que o silêncio é um mar sem ondas, 
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto. 
Só soubemos sofrer, enquanto 
O nosso amor 
Durou. 
Mas o tempo passou, 
Há calmaria... 
Não perturbes a paz que me foi dada. 
Ouvir de novo a tua voz seria 
Matar a sede com água salgada.



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HENRIQUE SEGURADO (1930)

O homem das livrarias Castil e homem de jornais, circulou um pouco lateral às grandes movimentações da poesia embora tenha publicado na Távola Redonda. As suas antologias deram-lhe uma notoriedade diferente.


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MINA DE SAL


Meu Pai no grande silêncio
O que ouve desta vez?
Os cedros no meio do vento
E quem sabe? o mar talvez…
Se ele serve de semente,
A quatro palmos do chão,
Quem sabe lá se não sente
O direito à criação…
Mas não sente a Primavera
— Equinócio pontual —
É planta que não gera
Canteiro em mina de sal.

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HELDER MACEDO (1935)
Helder Macedo é o poeta que Jorge de Sena mais prefaciou - e Jorge de Sena não confundia amizade com outra coisa. Nascido na África do Sul, infância nas colónias, não surrealista mas homem do Café Gelo. Exilou-se e voltou depois do 25 de Abril para ser, por ex., Secretário de Estado da Cultura - da Pintasilgo? Poetas na Secretaria da Cultura, uma tradição portuguesa. Depois Harvard, Londres e não mais voltou. Romancista, ensaísta, homem  dedicado a escrever sobre os grandes nomes e ser ouvido sobre os mesmos. Ninguém liga à sua poesia, que raramente se encontra na net.

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ANUNCIAÇÃO



Espada dúctil de fogo
negro sol latejando na vertical
ave branca explodida no meu ventre
é sem partilha
o amor que me anuncias
nem é humana
ou tua
a sombra que cresceu sobre o meu corpo
e por mim se alongou
e me alongou num fundo mar
sem esperança
pois não há esperança no mistério revelado
e o que a carne concebe
é já divino

porque sem comando.



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LUÍS AMORIM DE SOUSA (1937)
Outro dos poetas exilados - talvez também porque nascido em Angola e nunca adaptado a um pequeno país onde só agora descansa, vivo porém ainda, em Cascais. Devemos-lhe ter sido o amigo 
de Alberto Lacerda que ainda hoje está a trabalhar no seu infindável espólio.


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UM OUTRO QUE NÃO EU


um outro que não eu
bem mais voraz
concreto 
e subtil 
te poderá depois talvez contar 
destes momentos cúmplices de agora 
perfeitos na intimidade 
da vaga dor de cabeça 

não te posso adiar por minha culpa 
não te posso invocar 
por excesso de altruísmo ou de rancor 

arquitectura fria 
dum gesto quase orgulho 
do que já lá não coube 
se nutre a tua imagem 

mais fácil do que tudo 
seria perdoar-me 


perde-se o vício
por falta de virtude



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CARLOS MOTA OLIVEIRA (1951)

Este homem escreveu um livro chamado "Livro das Coisas Santas", editado em 95 pela Fenda. Em 150 pp. e 258 capítulos transcreve frases de 258 papas, quase todos os já tidos! Um livro que explica que no que diz respeito a ser iconoclasta este homem é um campeão. Títulos de edições de autor em poesia? "Os portugueses são imbatíveis no terço", "Ao cair subtil da tua saia". Não consigo acrescentar mais nada.

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Amável é esta casa
e há sabores
de uma terra intranquila.
Por aqui brincam os meus textos.
Adultos e sofridos.
Por aqui também andam
as vírgulas de rapariga.
Amável é esta cama.



NUNES DA ROCHA (1957)

Uma espécie de Luiz Pacheco da poesia, bebe no surrealismo e joga entre a paródia e o lirismo e o escárnio puro e simples. Publica convenientemente muito na & etc.


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Senta-te e limpa os lábios.
Acende cada uma das lâmpadas
Dos meus olhos,
Passa a tua mão, a mais nova,
Sobre a minha testa.

Deixa-me com a noite colada às têmporas,
Crisálidas saindo pela boca
Como um deus egípcio;
Quando a manhã chegar
Mil anos de terra e esquecimento
Tornar-me-ão amante por superstição,
Aquele que por medo evocarás
Quando passeares o cão no jardim.

Antes de partires deixa o mapa,
Em rima cruzada, suspenso
Na porta do frigorífico.
O amor não é um íman.



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LUIS MANUEL GASPAR (1960)

Conhecido como desenhador e ilustrador, a sua poesia deve muito a algum Joaquim Manuel Magalhães e é detalhista - descritiva, visual, portanto, claro!


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Encontrei a doca e o toldo lilás
desarvorado. Não havia mais água
nos carris para tingir a camisola
translúcida, só e trémula a ferrugem

p'lo remoto coração. Deixei-o negro
em parapeitos usados, outra roupa
recebida num sufoco, veia rasa
ao voo dos lençóis. Apareces? leva

a luz do cerco, a barca certa e sabida
na toalha; toarei os teus retratos
pela noite, a espuma do vinho que vela

a vela incisa, a cabeceira trancada.
Fora, ao candeio, cruzei o patamar -
para a partilha das pétalas p'los cães.



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FERNANDO EDUARDO CARITA (1961-2013)

Poeta que quase só publicou no exterior mas que era professor de português em Agualva-Cacém. Go figure... Nasceu em Nisa, terra de que muito gosto.


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Há no amor uma qualquer força mortífera
Que põe os amantes um contra o outro,
Bastará que a libertem;
Há no amor uma qualquer força vital
Que põe os amantes a favor um do outro,
Bastará que a mantenham em cativeiro;

Há no amor uma qualquer força inumana
Que há-de preservar os amantes

De sucumbirem nas margens um do outro,
Bastará que a coloquem já onde o amor os não alcança.



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JOÃO ALMEIDA (1965)

Mais um vimaranense a publicar poesia discretamente nas editioras certas. Poesia medida, cortada, precisa.


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HEIMAT


Enquanto espero a subida das águas
Vou construindo de cabeça
O poema deste dia

Prédios para deitar abaixo
Escalpes de negócios clandestinos
Cães que hesitam a travessia

Os bárbaros chegaram
Governam com ferro e pandemias.



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terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Smart.

"Bom dia. Eatacionou num lugar de garagem que não é o seu. Peço-lhe que retire o seu carro do mesmo quanto antes e que não o volte a fazer ou o mesmo será rebocado. O Proprietário."
O carro era um Smart, acho que era um Smart, e tinha entre um limpa para-brisas e o vidro da frente um papel com os dizeres acima. Li o papel a meio da tarde quando passei pela primeira vez pelo carro. Ao voltar a sair para jantar, uma mulher, que eu podia definir como ainda jovem, estava a arrancar com o Smart para ir embora, removido o papel.
Onde moro a garagem, grande, tem uma cancela que controla a saída (outra a entrada, claro). O Smart chegou à cancela e parou, fazendo um pouco de marcha atrás. Passei-o e acionei o comando. O Smart mexeu-se e pôs-se logo atrás. Eu passei a cancela lentamente e depois acelerei. A cancela falhou o Smart por pouco, que ficou ainda retido dentro da garagem, falhada a manobra. Vi-o recuar. Ela ia tentar outra vez, à boleia de alguém.
Não sei porque não sou assim.

sábado, 20 de janeiro de 2018

De "Cidadela"

"Ao legislar sobre o amor, faço nascer determinada forma de amor."

Antoine de Saint-Exupéry

De um nome.

Celebramos a longevidade nossa e alheia, a pessoal e também a partilhada, aquilo a que costumamos chamar de relacionamentos. Eu por estas alturas celebro os vinte e cinco anos de bem estar com o meu nome.
Estas coisas têm sempre um começo. O meu nome, "Guilherme", é um nome sem vizinhos. O "José" tem logo ali o "João" e o "Jaime". A "Maria" tem perto a "Manuela" e a "Mariana". Por outro lado é um nome que não é suave, parece quase um escolho na estrada, um nó no caminho.
Faz agora vinte e cinco anos explicaram-me que não. O som que sai depende sempre do emissor para soar bem. É.
Nem sempre sou rápido a aprender. Hoje sei. Que o meu nome reivindica. Que destaca e faz-se notar. Que a sua singularidade promete e resta-me a mim, portador, o trabalho de cumprir. Se não singular, para quê ser? O meu nome, "Guilherme", obriga-me e eu obedeço. Arte de que fui, também, tardio aluno.
Há dois amigos (um, uma) que filhos têm com este nome. Vida um pouco mais fácil mas nem por isso. Óptima escolha, penso. Enquanto, vinte e cinco anos depois, me explicam o importante que é eu chamar-me também Manuel!

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Das urgências.

Os portugueses são viciados em ir ao Serviço de Urgência e fazer umas análises e uns exames. Hipertrofiar os Serviços de Urgência ainda mais é recompensar a perversão, o vício.

A solução sempre passou e sempre passará pelos Cuidados Primários. Os SASU's precisam de ser reformulados e, sim, reforçados, ter alguns meios auxiliares de diagnóstico e capacidade de interagir no momento com o Hospital de Referência. Os Médicos de Família precisam de ver a sua lista de doentes drasticamente reduzida, bem como todas as burocracias a que hoje em dia vivem atados, e ter diariamente uma  Consulta Aberta adequada, com uma pre-triagem como salvaguarda.

A falta de investimento no SNS existe. Acontece há décadas. A fuga dos mais novos e, MAIS GRAVE, dos MELHORES, é uma triste realidade. Mas aqui não estamos a falar da Urgência.

A Urgência só se resolve com uma mudança de paradigma. 

domingo, 14 de janeiro de 2018

Um seixo na estrada.

Estou a ver pela décima quinta vez o filme "Hell Boy". Gosto do seu sentido de humor. Comprei pela tarde leite e paracetamol, do resto estou servido. Pingos, cola zero, tosta mista, que lanche! À saída, e porque ainda cedo anoitece, as luzes estavam por acender, todo um quarteirão no Seixo. E eu pensei: mesmo a tempo! Para quê luz quanto ela caminha a meu lado? 

Apenas um sonho.

Sexta à noite sonhei que estava a viver uma aventura com o António Ramos Rosa e o Gastão Cruz. Era um pouco confuso, acontecia algures, um deles era um espião, como saber qual?

Moral da história: isto é o que dá ler muita poesia e ver os canais Fox!

sábado, 13 de janeiro de 2018

Clemência e a tosse.

A minha mãe tem uma empregada, ou melhor, tinha. Deixem pintar-vos o quadro: o meu pai caiu e fracturou o fémur vai para oito meses. Entretanto foi operado duas vezes,  fez meses de fisioterapia, nunca mais viu (nem verá) o primeiro piso da sua casa. E fez 91 anos. A minha mãe fará 80, falta pouco. E tudo isto aguenta, tudo. Com excepção de uma higiene mais completa que acontece ao sábado, e de quatro horas que paga à D.Clemência terças e sextas. Pagava.
Ontem fui a Ovar. A minha mãe estava muito nervosa. O meu pai, manias de velho, passa os dias, as tardes e as noites também, a chupar rebuçados do Dr Bayard. Que a minha mãe compra aos pacotes, uns quatro por semana. A semana passada estranhou um pouco, faltava um pacote na pilha na cozinha, "terei contado mal". Esta semana também, foi à carteira da D. Clemência, nela um mar de rebuçados despejados e prontos para seguir viagem. A minha mãe recuperou os rebuçados e nada disse. Cheguei a Ovar pouco depois das cinco, ontem portanto, ainda a D.Clemência andava a limpar o primeiro andar. A minha mãe contou-me e eu fiquei... sem palavras. Dizem não ser frequente. Chegou o fim das horas da dita senhora e a minha mãe, sem mais: "Pronto, Clemência, aqui tem a paga do dia e estive a pensar e não preciso mais dos seus serviços!". Da D.Clemência, que terá sentido leve a carteira, nem um protesto, nem uma pergunta. "Então boa tarde, minha senhora!". Ficamos a conversar, a minha mãe lembrando um livro de culinária, uma toalha amarela, desaparecidos. Os velhos sabem. Pensamos que não mas sabem. Saberemos nós alguma vez como eles?
Ao voltar para o Porto vim a pensar na D.Clemência e na sua necessidade compulsiva de rebuçados antitússicos alheios. Depois pensei no Zeinal Bava e no Armando Vara (exemplos...) e fiquei com vontade de a beijar na face.

sábado, 6 de janeiro de 2018

Catorze poetas de agora para chegarmos a... 136! Caramba!

A palavra coração é das mais usadas para estas lides da poesia. Mal, entenda-se. Uma armadilha com quatro cavidades. Muitos poetas destes anos vão por aqui. O seu triunfo acontece quando sobrevivem á armadilha mencionada.



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VASCO FERREIRA CAMPOS (1965- )

Começou a publicar na Pedra Formosa, de Guimarães e depois prosseguiu pelo livro com o revelador título " O Coração Sabe". Não publicou mais, que eu saiba. E seguimos. Lá está, a palavra.


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PREVISÕES DA METEREOLOGIA


Amanhã não existirás. Passará
uma nuvem. O vento soprará fraco nas primeiras horas.

Haverá geada no interior, durante a manhã. Não serás acordado.
As crianças vão levantar cedo a temperatura que nos deixaste:
uma lucidez para o espírito, uma espinha dorsal para o corpo.

Para a tarde, o céu estará limpo. Alguém pensará
dentro dos teus pensamentos. A transparência clara do sol
ficará registada no mercúrio dos termómetros.

O vento recuperará o fôlego dos dias anteriores, gemendo
ao passar por um homem. Por fim, o dia cairá sobre a tua sombra.
À noite sairás para a rua sem vontade  de partilhar o frio com ninguém.

No dia seguinte voltará a chuva ao território. Passará
uma nuvem. Alguém te reconhecerá por entre os pingos
enquanto escutas a chuva a cair no coração.



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JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (1965- )

O padre José Tolentino Mendonça é um madeirense curioso. Assisti a uma visita por ele guiada em Serralves vai para anos. Baixo, gordinho, roupa escura, óculos pequenos, a voz reduzida, duvidei que o passeio pela obra já não me lembro de quem fosse para ele um prazer, público pelo menos. Podemos aqui falar de um triângulo "amoroso", pois ele é amigo pessoal de uma pessoa que tem a minha enorme consideração, e foi-o do poeta Daniel Faria, já falecido. A sua poesia é, efectivamente, uma dos sentimentos. O mundo é triste, insular. Pequenas luzes acontecem, Tolentino aponta-nos algumas.


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A CASA ONDE ÀS VEZES REGRESSO


A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.



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JORGE GOMES MIRANDA (1965- )

Não sei porque ultimamente deixou de publicar. Conheci-o ao balcão da antiga Leitura, ainda no tempo do "Sr. Fernandes". Fez filosofia, tomámos cafés e cervejas e jantámos juntos. Voltámos a ver-nos muitos anos depois, a sua avó estava internada. A doença pode ser uma barreira intransponível. Nós, os deste lado, não conseguimos passar para o lado de quem sofre pelo ente mais querido num hospital onde as janelas não fecham, o chão está levantado, as camas têm a pintura descascada. "Publicaste?", "Publiquei." Aqui entendemo-nos. Voltamos a não nos erntender na Brasileira umas semanas depois, talvez por, dele, pudor. O Jorge é um descendente cuidado do "regresso ao real". Mas busca uma palavra diferente, mais falada, preocupada com o mundo, sempre. Tem um coração gentil e os olhos cheios de melancolia.  E escreve muito bem. 


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UM BALDE DE CAL


Em vida acontece passarmos por regiões 
sísmicas, zonas de fractura.
Com bagagens em excesso nos olhos
e o peito arfando de objectos cortantes:
desejo, abandono e lembranças.
O contrabando das ideias
de encontro aos lábios,
muito perto da rebentação.

Consumimos quem nos ama,
em dias de muito sol, refrigerante na mão.
Inclinados a aceitar a transumância dos
sentidos, impuros perdigueiros,
nunca seremos, no entanto, por pudor
ou escrúpulo, capazes
de atirar um balde de cal
ao passado.



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PAULO JOSÉ MIRANDA (1965- )

O poeta itinerante. Revelado nos noventa desapareceu de circulação atrás de uma cineasta turca. Algumas voltas depois foi parar ao Brasil por onde ainda andará, numa qualquer cidade. Mais prosa do que poema, homem de expedientes na vida sempre poéticos, gostaria de o conhecer.


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O ESCONDERIJO


Quando não tenho onde esconder as dores
espreito pela janela, aguardo um carro passar.
As mulheres que vêm das compras

e discutem sobre o elevado preço das coisas.
O gesto mínimo traz em si todas as palavras
que não chegam para suspender este sufoco.

Coabitamos cada vez pior, eu e a memória.
Os prédios em construção, as barracas, 
as escavadoras tirando terra daqui, colocando-a ali,

o ladrar dos cães àquilo que lhes é estranho.
Em nada encontro um antídoto para o sentido.
Quando não tenho onde esconder as dores
espreito pela janela, aguardo qualquer coisa passar.



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RUI CÓIAS (1966- )

Ainda não percebi muito bem porque este poeta é mais citado fora do que dentro de Portugal. Os seus poemas têm vindo a crescer. Foi publicado pela Quasi mas esta, por uma vez, fez bem. A sua poesia já foi confessional.


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9.


São os olhos que aproximam o lugar ao coração.
Agora que regressamos é nisto que penso 
enquanto fazemos sinais uns para os outros com as luzes
dos carros, na rápida estrada, ao anoitecer. 
Olha-se devagar para a vida e sobretudo assim
damos conta dos silêncios,
dos nomes devolvidos ao tão leve silêncio.
A casa vincada pela névoa, a
aldeia imobilizada ao passearmos em grupos,
o café que me conforta quando o recebo entre as mãos.
Como dizer que são estas as mais secretas regiões da alma
a que voltamos sempre
nos maiores frios de dezembro?
Se de repente dizem que estamos a uma eternidade
frágil dos dias inquietos,
cruzas uma palma da mão sobre a outra e olhas para as 
unhas, rindo de quando em vez para mim, que fico tão feliz.
E no regresso, quando os sobressaltos se repetem
e anoitece nas estradas vazias e o mundo adormece,
há uma solidão que estremece as bermas e nos aflige debaixo da
língua, como uma chuva miudinha.
Como falar depois da tua clara inclinada a meu lado
e do recanto mais longínquo dos pinhais?
Com acreditar que o tempo não trará aos olhos a maior
solidão
em que ficámos?



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ANA PAULA INÁCIO (1966- )

Uma discreta "realista" que nasceu no Porto e ensina Filosofia na Terceira. Poesia em segredo, falada, contada, poesia de coisas participando o que, em segredo, às vezes as coisas vêem.


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como se o vento trouxesse
recados
que pudesse abandonar
ao serviço do mensageiro

como se o vento te pudesse levar
e as palavras transformar
no milagre da cerejeira

não descuides o vento
que quem uiva
é lobo faminto

rodeia-te antes do essencial
faz-te cozinheira, semeia o teu quintal

o que por natureza rola
há-de rolar
e tu sozinha
o que podes contra o vento?



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CARLOS BESSA (1967- )

Sim estes são tempos de descendentes do "regresso ao real", o Carlos Bessa outro, que já assinou com um "Luís" pelo meio que depois deixou cair ou não, o Google não tem a certeza. Outro nortenho que se foi para os Açores a viver. O seu desespero com as condições e as assimetrias dos conviventes não cessam. Gostava de o conhecer.


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CUMPLICIDADES, LATIDOS


Entre uma cama e outra cama,
entre um corpo e outro, a baba
mortífera do coração. O quarto
acanhado, o cheiro a bafio
da solidão. Na pressa de uma
noite em que se lembra o frio,
a chuva, o vento: esses minutos
de deriva e esquecimento.
De manhã, com os pulmões num oito
- a gasolina, o supermercado,
os programas de televisão -
ouve-o falar do que seria
bom para Portugal, do que se
poderia fazer para que todos
vivessem melhor. Chega o sábado
e encontra-o nas limpezas,
que é o seu modo de minorar
a solidão. E a gasolina,
o supermercado, os programas
de televisão, outras tantas razões
para viver e o pretexto (menor?)
para algumas trocas de sorrisos.



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RUI PIRES CABRAL (1967- )

Filho do poeta A. M. Pires Cabral. Mas com um atirar de armas completamente diferente. Não fica nas ameias a ver, desce e vai á luta.


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ESTRELA DO ENTARDECER


Regressa em Julho com a sua escolta
de desejo e medo - o amor, onde
sempre vivi acima das minhas posses.

Agora guardo as razões que me deste
para escrever estes versos sobre ti
e tenho a alegria de voltar a ver-te

ao fim do dia, já a cidade sossega
em todas as praças: trazes da rua na boca
o ardor de um verão lembrado

que hei-de voltar a esquecer.
A esperança que nos junta é frágil
e breve é a estrela que nos guia.



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JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES (1967- )

Outro que trabalha ali no perímetro do Património da Humanidade sede in Porto. Cirurgião Plástico. Poesia feita sempre com dois passos atrás, sob o pretexto de que assim fazem "lá fora". Mas é assim que o Poeta por dentro a calça.


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os homens de hoje são engraçados dizem
"o vento é deus a respirar" enquanto mudam
a fralda ao mais novo. meus amigos não
fogem à regra um a um pousam o jogo e

saem para a capela (despedem-se de mim
como sombras roubando luz à parede) quase
os consigo imaginar voltando atrás noutra
vez para ver se ela realmente tinha fechado

o portão, sobre a mesa estão suas cartas
voltadas (longa pausa nesse jogo que nunca
chego a recolher) um a um regressarão

jurando fidelidade (aro dourado nos dedos
cigarro nos lábios em brasa) olhos na voz
do relógio para não chegar tarde a casa



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BÉNÉDICTE HOUART (1968- )

Nascida lá mas com mãe portuguesa e cá desde os sete, vive, escreve e traduz em Coimbra. As mulheres ganharam para elas uma poesia bem nova e bem fresca aqui. Mas atenção mulheres se quereis esta voz! E há mais... Poesia que é só deste milénio, sem grande diálogo com a geração. A poetisa diz gostar de... Drummond de Andrade. Ora bem...


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tenho um mamilo sempre erecto e
outro sempre murcho
ora bem,
a interpretação que faço do fenómeno
embora duvidando que entusiasme alguém
é a seguinte:
um pressente coisas de que o outro nem suspeita
coitado do primeiro
quando não há nada
coitado do segundo
se quiser arrebitar



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LUÍS FILIPE PARRADO (1968- )

Saltou para a ribalta com o seu segundo livro em 2012, portanto outro não dialogante? Não é bem, porque viveu atento. Mas notam-se os anos.


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COMER UMA LARANJA


Comer uma laranja
é como ingerir o próprio sol

com a boca cheia de luz
não há portanto
espaço
para palavras
sobre mim.



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LUÍS QUINTAIS (1968- )


Antropólogo, escreve sem geração, numa geometria e equilíbrio que não são frequentes nestes tempos.


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40


A selva escura, vejo-a agora nítida aos 40.
Numa antecipação do caminho que não meço
e que se abre de tão denso à minha frente,
numa escuridão que é apenas ignorância,
             despropósito, aventura -
certeira morte em incerto tempo.



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MIGUEL MARTINS (1969- )

Acabo de conhecer o Miguel Martins. Parece ser um hiperactivo. Um exibicionista, quase. Às vezes escreve muito bem, embora nem sempre saiba para onde vai. Escreve hoje, e muito.


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O DIABO EM ALTA DEFINIÇÃO


a caminho do Pátio do Salema
reparei num homem de pé, numa ruela, que assistia
à tourada por telemóvel

o pasodoble alumiava-lhe o rosto

Évora é um labirinto estranho, quase perfeito
e belo demais para o que contém



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JOSÉ MIGUEL SILVA (1969- )

O filho pródigo do "regresso ao real", é um pessimista enamorado. Talvez o mais capaz dos filhos dessa beberagem preparada por Joaquim Manuel Magalhães, tem produzido algo menos nos últimos anos. A sua poesia tem um saber contido a par de uma enorme capacidade para o Salto.


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O DIREITO DO MAIS FORTE À LIBERDADE - RAINER WERNER FASSBINDER (1974)


1.


Quem tem amor não tem
razão, tem apenas frio.
Não te confundas, cão
vadio, com chacais.
Pois o chacal é um animal
que tem sempre razão.


2.


Sou tão feliz. Estas lágrimas,
não liguem, é do álcool.
Vá - pago um copo
a quem disser que me ama!


3.



Não te deixes enganar, raposinho,
pelos modos bem-criados do chacal.
Não eras tu que dizias: " Há pessoas
que se lavam, e há outras que são limpas"?

Que não te impressione a toalha de linho,
o brilho dos talheres, o arroto de lavanda.
Repara antes no seu prato: reconheces
inocente, o acepipe? É o teu coração,

raposinho, isso mesmo, o teu coração.



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quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Oito poetas e chegamos ao ano em que nasci. E 122 contados.

Escolhas minhas e escolhas do público? Não, minhas todas. Continuamos no dilema da abundância. Daqui a vinte anos, em estando aqui voltarei. Já passámos bem a centena e eles continuam a vir! A poesia portuguesa tem as suas tribos, menos mal que também mantém algumas qualidades. Curiosamente nestes anos eu deveria talvez explicar porque me aborrece o Daniel não-sei-quê Rodrigues, porque adormeço "sem" o Xico Zé Viegas, porque não me entusiasma o Fernado Pinto do Amaral. Não tenho tempo nem me apetece.



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ANTÓNIO CABRITA (1959- )

Um desalinhado que escreveu boa crítica de cinema no Expresso durante muitos anos. Escrita extensa, barroca, a traduzir uma relação não fácil com o que seja. Também escreveu muita prosa e - em conjunto com Maria Velho da Costa - uma peça sobre o fim de Camilo intitulada "Inferno", que um dia acabarei de ler. Viverá ainda entre Portugal e Moçambique?


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SOPRA AS TUAS VELAS


O corpo com a idade impõe ora folga, ora um alpendre certo (com vinha de enforcado) aos apartes, enquanto surripia o humor aos corvos.
Um dia esquece-nos, expele pelos olhos uma faúlha preta, e eis-nos arredados
de toda a escuta como as flores de plástico, que macambuzam a televisão da avó.
Já fui mais festivo, fotografava ao acaso e, na ampliação, detectava a secreta geometria dos fundos, as gengivas que desbravam o riso de Deus.
Mais presciente a minha filha de três anos: «és a sereia Ariel ou o linguado?»
Nem hesita: o linguado!
Entra no teu silêncio e sopra as tuas velas, recomendava, astuto, o Victor Hugo.



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MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA (1959- )

A mulher forte do grupo Leya - editora, entenda-se - não é uma poetisa de descartar, embora talvez também não mereça as parangonas que já teve. A sua poesia é declaradamente escrita em contra-corrente, romântica, confessional, subjectiva. E, porém, de vez em quando, Acontece. Parece ser casada com o director editorial da sua maior concorrente, a Porto Editora. A poesia deste não é tão boa.


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DEVAGAR

Nada entre nós tem o nome da pressa.
Conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. Sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. Porém,
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. Entre nós
o tempo desenha-se assim, devagar.
Daríamos sempre pelo mais pequeno engano.


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ADÍLIA LOPES (1960- )

Pseudónimo de uma mulher onde uma doença mental "de base" não obsta a uma brilhante carreira literária, esta vai ser a nossa "poetisa louca" que vai chegar a velha! Conheci-a com o "Poeta de Pondichéry", e o seu humor sibilino e sabedor é do melhor que por cá acontece. Continuo fascinado pelo seu texto sobre a menstruação - e a que sofre de duras dismenorreias peço muita desculpa. Que sobre ela tenham publicado um livro chamado "Quem Quer Casar Com a Poetisa?" é, talvez, uma piada de mau gosto. Mas, se calhar, a Adília Lopes gostou: quem a lê percebe que ela, uma "tímida desenrrascada", está pronta para tudo!


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A ELISABETH FOI-SE EMBORA


(com algumas coisas de Anne Sexton)


Eu que já fui do pequeno-almoço à loucura
eu que já adoeci a estudar morse
e a beber café com leite
não posso passar sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth?
eu só gosto que seja a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
não suporto que a senhora doutora me toque na cabeça
eu só venho cá senhora doutora
para a Elisabeth me lavar a cabeça
só ela sabe as cores os cheiros a viscosidade
de que eu gosto nos shampoos
só ela sabe como eu gosto da água quase fria
a escorrer-me pela cabeça abaixo
eu não posso passar sem a Elisabeth
não me venha dizer que o tempo cura tudo
contava com ela para o resto da vida
a Elisabeth era a princesa das raposas
precisava das mãos dela na minha cabeça
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu anti-séptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida




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FRANCISCO DUARTE MANGAS (1960- )

Minhoto, tem em Vila do Conde uma casa com um grande quintal onde pratica a mui nobre arte de ser agricultor de quintal. Porsador, jornalista, poeta. A sua poesia, epigramática, Vale.


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os tordos
voam em bando

morrem um a
um




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FERNANDO LUÍS SAMPAIO (1960- )

Foi convidado a demitir-se em 2002 de director do então Instituto Português das Artes do Espectáculo, por co-responsável na criação de um quadro de "emergência financeira". Premonitório? Fora isso posso dizer que nesta geração é aquele que melhor herda os pressupostos do "regresso ao real" do Joaquim M Magalhães, e isto é um elogio.


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BURNING SANDS


A fuligem adocicada do
pôr do sol.
Uma por uma as verdades
deste idílio vão
de escada amortecem as mentiras 
da razão.

A sombra que no espelho se espraia
traz-te pela trela mutilada de afectos,
o sorriso rebenta num escombro.

A correr para uns braços, 
a dançar trance, o sentimento
é um cerco, um escorpião
de ténis empoeirados e amistoso.

No cigarro matinal o tempo veleja
nas volutas da tua vida
o rastilho de um rubi
que se ilumina quando te calas.



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ANA MARQUES GASTÃO (1962- )

Ensaísta, crítica de dança e de artes plásticas, colaboradora da Colóquio-Letras, etc., etc. Perdoo-lhe uns quantos hit and miss pelo poema abaixo.


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T


Para a dor
não há ciência
só a distância
entre a ausência
e a tua chegada.



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PAULO TEIXEIRA (1962- )

Reconhecido cedo talvez porque infiliável, a sua poesia é uma viagem no tempo e na geografia até outros mundos poéticos, seguros, circunstanciados, medidos. Antigos porque viver hoje...


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ODE DE WILLIAM SHAKESPERARE A HENRY WRIOTHESLEY


Poderei comparar-te a um dia de verão?À luz desses
céus que desafiam, errantes e sem ruído, a calma dos
deuses que somos um instante frente à orla chegada
dos mais insidiosos horizontes? Love´s not Time´s
fool. E nada tenho a dizer ao rosto de beleza que te
cresce na sombra ou à dedicatória onde as iniciais te
chegam invertidas, a lembrarem o contrário que somos
do cego e vasto mundo.Assim queria afundar
estas frases no presságio das marés distantes, para
que o silêncio (o sangue que te corre esquecido
pela carne) fosse, por um momento, clareira
aberta aos olhares ao gesto todo nu desse corpo, o
coração como uma lâmpada acesa na mãodireita, no fundo
quarto à espera. Deixa só que a hora escureça
para expores à luz dos gerânios e a mais
obscuros usufrutos a pele despida de outras claridades e fecha os
olhos à vitória da minha boca na tarde dos teus
lábios. A noite tem estrelas, o dia sóis intermináveis:
eu tenho só, pathetic soul!, a alba incorruptível
que me nascerá escondida na sombra dos teus
passos
.
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JOSÉ CARLOS BARROS (1963- )

Um homem português completo, pois nasceu em Boticas e vive em Vila Nova de Cacela. Um homem da ironia e do "real" ou não fosse arquitecto paisagista. Também prosista que de blogues tem viajado para livros premiados.


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SONETO DO SOBRESSALTO


É fácil no amor o ser feliz
se a tanto se resume o que buscamos
jurando a eternidade com o giz
das coisas que escrevemos e apagamos

conforme nasce o dia ou anoitece.
Mas eu, amor, exijo o sobressalto,
a dor, o lume, o vento que enlouquece,
o medo, a cicatriz, o passo em falso.

E arrisco-me a ter frio e a ter sede.
E ouso o fogo, a areia da tristeza,
o voo no trapézio sem a rede,

o abismo, um precipício, uma ravina
a pique desenhada de surpresa.
Do mundo eu temo apenas a rotina.



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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Dez poemas = 114!

O tempo ainda não é muito. Reparo agora o quão severo fui para os primeiros anos. Ignorei Torga, Régio. E vou transcrever nos anos que se seguem poetas que serão possivelmente bem inferiores. Deixo ao leitor a responsabilidade da coda. Enquanto não a contagem continua. Uma contagem porém onde cada vez mais só os poemas falam.



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GIL DE CARVALHO (1954- )

Devo-lhe recolhas lindíssimas de poemas turcos, mongóis e sobretudo chineses. A sua poesia não existe. Os seus poemas são rastos, intervalos, a poesia reside fora do poema. E porém...


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A DIÁRIA


Um fósforo aceso no escuro Lisboa
Muito cedo. Passa do muro indigo
Às casas; e vai resgatando partes
Do arvoredo. Põe a traqueia em risco
Fedegosa - Sabias? Vamos para o emprego.

A pequena acrtiz procura trabalho
E deixa-se foder. Entram padrões
De consumo a erguer o riso muito
Mais em baixo: espectáculos de rua.
São argolas de um muro... presas
Onde o rio - bate, farmacopeia sua.

Enquanto dois velhos sonâmbulos
Ptão e Raz, concebem disto -  a fundo
Uma nova peça para antigos amos:
Cedo Lisboa raspada num fósforo cheira
Um pouco a terebentina e mar. Um gato

No casco, mija para entrar no segredo.
Por mais folhas que suba o sol
Segura mal velhos observatórios
A templos recentes. Tal como
O país, terá de escolher: ou menos
Puta ou melhor actriz.



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CARLOS ALBERTO MACHADO (1954- )

Trata-se de um açoriano tardio, sediado nas Lajes do Pico, mais a Companhia das Ilhas. Antropólogo de formação e teatreiro. Começou a publicar poesia tarde.


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Não disse as palavras certas
faltou-me o tom e o talento
não tires da minha boca
as palavras que não ouviste
a responsabilidade é tua já te disse
organiza como quiseres as palavras
e os silêncios
o ritmo certo da morte escolhe-o tu
a minha boca continua fechada.



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ANA LUÍSA AMARAL (1956- )

Assisti a uma conversa sua vai para tempos e percebi que não morávamos na mesma rua e que não residia em mim pena extrema por isso. O homicida às vezes diz "interessante", vira as costas e vai-se embora. Pena tenho por quem nasce no ano a seguir. Calha que conheço uma colega de carteira, toma! Poesia bem urdida, às vezes só isso.


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A MAIS PERFEITA IMAGEM


Se eu varresse todas as manhãs as pequenas 
agulhas que caem deste arbusto e o chão 
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para 
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs 
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além 
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência 
que o nada representa, veria que o arbusto não passa 
de um inferno, ausente o decassílabo da chama. 
Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os 
ramos, também a entendia, a essa imperfeição 
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes 
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse 
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu 
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e 
descontínua que foge ao meu comum. O devagar do 
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra 
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou 
a um neurônio meu, unia memória que teima ainda 
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária. 
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus. 




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MANUEL CINTRA (1956- )

É irmão mais novo de Luís Miguel Cintra. É homem também de teatro e... canta! A sua poesia nasce não no surrealismo mas nos surrealistas, parece-me.


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Primeiro a mulher
abre-se pernas rasgos de mãos ventres líquidos recebe
começa recomeça começa por acreditar

a carne move-se circulam palavras sangues esperas
os membors procuram-se chocam ao encontro dos becos
ao encontro dos ecos

Segundo a mulher
agarra o germe que passa cria obstáculos procura
absorve encontra fecha pernas tece meses projectos
vai acreditando

Terceiro a mulher declara
à sua volta fulminam os enxovais.

É uma história.
Se acaso a criança morre,
a mulher acreditou em vão; nos outros casos

Quarto a mulher



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ADELINO ÍNSUA (1956- )


Migrado em Guimarães, mais sua Pedra Formosa. Poesia contida, meticulosa. Suponho que será amigo do Carlos Poças Falcão, o que tem lógica.


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MARIS STELLA


1


O jardim de minha Mãe é um paraíso,
saíram comigo do ventre suas plantas e seus cuidados.
Tem a largura de uma campa
o comprimento de uma levada de flores.
Nele se ouve melhor o coro dos anjos
apesar das chuvas de fel e vinagre.
A alfazema do sono sobe dele à Via Láctea.
No jardim materno nasce a rosa das manifestações
e floresce a desigualdade espiritual em esmolas.
Nele há uma gota de sangue caída
em forma de flor crucífera.



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ABEL NEVES (1956- )

Tem um abrigo nos Pitões das Júnias, sem luz nem água, para onde vai quando o levam porque não conduz. Montalegre viu nascer um homem do teatro que assim se fez na Comuna. Boa poesia acontece, também.


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perdi o teu rosto
o de maio
e também o de junho com a cidreira
não há esperança
agora os dias são menos dias
diz-se que mais curtos
atrás das folhagens do verão
é uma hipótese para as pequenas aves
e talvez que bicando    voando
recuperem elas qualquer coisa
do que foi a tua passagem por aqui



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JORGE AGUIAR OLIVEIRA (1956- )

Mais um do planeta Sião que ainda sobrevive quer nas redes sociais quer publicando, aqui e ali.


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DORME


poder dormir
dormir o dia todo
todos os dias
pelos dias

podes ir dormir
dormir
ignorando emoções
as lágrimas

continua a dormir
a dormir
para acordares
somente
quando sentires
a festa da morte
na tua face

até lá
segue a dormir
no desconhecido
respirando
tranquilamente

vá, dorme



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JORGE SOUSA BRAGA (1957- )

Este, vejam lá, para além de médico trabalha na concorrência, no Santo António. Até temos uma doente em comum. A poesia tornou-se conhecida cedo. A sua irreverência.. juvenil? tornou a sua poesia precocemente conhecida. Algum recolhimento actual terá a sua lógica.


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UM PIRILAMPO


Estende a tua mão. Olha como arde... Não tenhas medo de lhe tocar. Um pirilampo pode passar a noite numa folha de trevo, sem que daí resulte qualquer queimadura.

Se tivesse que eleger um mestre - hipótese que me repugna um pouco - de certeza que me decidiria por um pirilampo como este.



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REGINA GUIMARÃES (1957- )

Não me é fácil aqui a escrita, ou moderá-la, porque conheço pessoalmente a pessoa. Não de perto mas a avaliação está feita. E aqui está o que de melhor o Porto tem hoje. Possuo o "Caderno do Regresso", extenso dário poético publicado em 2010 - na prática a poesia "de um ano". Os livros da autora são quase todos edições "pessoais", de difícil encontro. Poesia revolvida, trabalhosa. Com a ginástica apurada e tensa. Brilhante muitas vezes. Os "Três Tristes Tigres" é que eram...


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MINÉRIO


roubar ruído ao que toca,
e ouro à água corrente
roubar os dentes à roda
da fortuna
retirar todo o sentido
ao castigo
que faz vão e descabido
tudo quanto em nós se faz
arrumar lá para um canto
aquele antigo condão
de fechar os olhos cedo
e pedir ao sonho certo
que viesse e que durasse
até ao dia seguinte



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LUÍS MIGUEL NAVA (1957-1995)

Morreu assassinado em Bruxelas onde vivia há 9 anos. O seu "martírio" está mais do que canonizado. A sua poesia hoje menos, porque não fácil, e porque nela não cessam os envios à sua busca física - que terminou no seu apartamento numa determinada noite macabra.


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A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.




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