sábado, 6 de janeiro de 2018

Catorze poetas de agora para chegarmos a... 136! Caramba!

A palavra coração é das mais usadas para estas lides da poesia. Mal, entenda-se. Uma armadilha com quatro cavidades. Muitos poetas destes anos vão por aqui. O seu triunfo acontece quando sobrevivem á armadilha mencionada.



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VASCO FERREIRA CAMPOS (1965- )

Começou a publicar na Pedra Formosa, de Guimarães e depois prosseguiu pelo livro com o revelador título " O Coração Sabe". Não publicou mais, que eu saiba. E seguimos. Lá está, a palavra.


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PREVISÕES DA METEREOLOGIA


Amanhã não existirás. Passará
uma nuvem. O vento soprará fraco nas primeiras horas.

Haverá geada no interior, durante a manhã. Não serás acordado.
As crianças vão levantar cedo a temperatura que nos deixaste:
uma lucidez para o espírito, uma espinha dorsal para o corpo.

Para a tarde, o céu estará limpo. Alguém pensará
dentro dos teus pensamentos. A transparência clara do sol
ficará registada no mercúrio dos termómetros.

O vento recuperará o fôlego dos dias anteriores, gemendo
ao passar por um homem. Por fim, o dia cairá sobre a tua sombra.
À noite sairás para a rua sem vontade  de partilhar o frio com ninguém.

No dia seguinte voltará a chuva ao território. Passará
uma nuvem. Alguém te reconhecerá por entre os pingos
enquanto escutas a chuva a cair no coração.



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JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (1965- )

O padre José Tolentino Mendonça é um madeirense curioso. Assisti a uma visita por ele guiada em Serralves vai para anos. Baixo, gordinho, roupa escura, óculos pequenos, a voz reduzida, duvidei que o passeio pela obra já não me lembro de quem fosse para ele um prazer, público pelo menos. Podemos aqui falar de um triângulo "amoroso", pois ele é amigo pessoal de uma pessoa que tem a minha enorme consideração, e foi-o do poeta Daniel Faria, já falecido. A sua poesia é, efectivamente, uma dos sentimentos. O mundo é triste, insular. Pequenas luzes acontecem, Tolentino aponta-nos algumas.


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A CASA ONDE ÀS VEZES REGRESSO


A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.



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JORGE GOMES MIRANDA (1965- )

Não sei porque ultimamente deixou de publicar. Conheci-o ao balcão da antiga Leitura, ainda no tempo do "Sr. Fernandes". Fez filosofia, tomámos cafés e cervejas e jantámos juntos. Voltámos a ver-nos muitos anos depois, a sua avó estava internada. A doença pode ser uma barreira intransponível. Nós, os deste lado, não conseguimos passar para o lado de quem sofre pelo ente mais querido num hospital onde as janelas não fecham, o chão está levantado, as camas têm a pintura descascada. "Publicaste?", "Publiquei." Aqui entendemo-nos. Voltamos a não nos erntender na Brasileira umas semanas depois, talvez por, dele, pudor. O Jorge é um descendente cuidado do "regresso ao real". Mas busca uma palavra diferente, mais falada, preocupada com o mundo, sempre. Tem um coração gentil e os olhos cheios de melancolia.  E escreve muito bem. 


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UM BALDE DE CAL


Em vida acontece passarmos por regiões 
sísmicas, zonas de fractura.
Com bagagens em excesso nos olhos
e o peito arfando de objectos cortantes:
desejo, abandono e lembranças.
O contrabando das ideias
de encontro aos lábios,
muito perto da rebentação.

Consumimos quem nos ama,
em dias de muito sol, refrigerante na mão.
Inclinados a aceitar a transumância dos
sentidos, impuros perdigueiros,
nunca seremos, no entanto, por pudor
ou escrúpulo, capazes
de atirar um balde de cal
ao passado.



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PAULO JOSÉ MIRANDA (1965- )

O poeta itinerante. Revelado nos noventa desapareceu de circulação atrás de uma cineasta turca. Algumas voltas depois foi parar ao Brasil por onde ainda andará, numa qualquer cidade. Mais prosa do que poema, homem de expedientes na vida sempre poéticos, gostaria de o conhecer.


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O ESCONDERIJO


Quando não tenho onde esconder as dores
espreito pela janela, aguardo um carro passar.
As mulheres que vêm das compras

e discutem sobre o elevado preço das coisas.
O gesto mínimo traz em si todas as palavras
que não chegam para suspender este sufoco.

Coabitamos cada vez pior, eu e a memória.
Os prédios em construção, as barracas, 
as escavadoras tirando terra daqui, colocando-a ali,

o ladrar dos cães àquilo que lhes é estranho.
Em nada encontro um antídoto para o sentido.
Quando não tenho onde esconder as dores
espreito pela janela, aguardo qualquer coisa passar.



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RUI CÓIAS (1966- )

Ainda não percebi muito bem porque este poeta é mais citado fora do que dentro de Portugal. Os seus poemas têm vindo a crescer. Foi publicado pela Quasi mas esta, por uma vez, fez bem. A sua poesia já foi confessional.


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9.


São os olhos que aproximam o lugar ao coração.
Agora que regressamos é nisto que penso 
enquanto fazemos sinais uns para os outros com as luzes
dos carros, na rápida estrada, ao anoitecer. 
Olha-se devagar para a vida e sobretudo assim
damos conta dos silêncios,
dos nomes devolvidos ao tão leve silêncio.
A casa vincada pela névoa, a
aldeia imobilizada ao passearmos em grupos,
o café que me conforta quando o recebo entre as mãos.
Como dizer que são estas as mais secretas regiões da alma
a que voltamos sempre
nos maiores frios de dezembro?
Se de repente dizem que estamos a uma eternidade
frágil dos dias inquietos,
cruzas uma palma da mão sobre a outra e olhas para as 
unhas, rindo de quando em vez para mim, que fico tão feliz.
E no regresso, quando os sobressaltos se repetem
e anoitece nas estradas vazias e o mundo adormece,
há uma solidão que estremece as bermas e nos aflige debaixo da
língua, como uma chuva miudinha.
Como falar depois da tua clara inclinada a meu lado
e do recanto mais longínquo dos pinhais?
Com acreditar que o tempo não trará aos olhos a maior
solidão
em que ficámos?



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ANA PAULA INÁCIO (1966- )

Uma discreta "realista" que nasceu no Porto e ensina Filosofia na Terceira. Poesia em segredo, falada, contada, poesia de coisas participando o que, em segredo, às vezes as coisas vêem.


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como se o vento trouxesse
recados
que pudesse abandonar
ao serviço do mensageiro

como se o vento te pudesse levar
e as palavras transformar
no milagre da cerejeira

não descuides o vento
que quem uiva
é lobo faminto

rodeia-te antes do essencial
faz-te cozinheira, semeia o teu quintal

o que por natureza rola
há-de rolar
e tu sozinha
o que podes contra o vento?



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CARLOS BESSA (1967- )

Sim estes são tempos de descendentes do "regresso ao real", o Carlos Bessa outro, que já assinou com um "Luís" pelo meio que depois deixou cair ou não, o Google não tem a certeza. Outro nortenho que se foi para os Açores a viver. O seu desespero com as condições e as assimetrias dos conviventes não cessam. Gostava de o conhecer.


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CUMPLICIDADES, LATIDOS


Entre uma cama e outra cama,
entre um corpo e outro, a baba
mortífera do coração. O quarto
acanhado, o cheiro a bafio
da solidão. Na pressa de uma
noite em que se lembra o frio,
a chuva, o vento: esses minutos
de deriva e esquecimento.
De manhã, com os pulmões num oito
- a gasolina, o supermercado,
os programas de televisão -
ouve-o falar do que seria
bom para Portugal, do que se
poderia fazer para que todos
vivessem melhor. Chega o sábado
e encontra-o nas limpezas,
que é o seu modo de minorar
a solidão. E a gasolina,
o supermercado, os programas
de televisão, outras tantas razões
para viver e o pretexto (menor?)
para algumas trocas de sorrisos.



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RUI PIRES CABRAL (1967- )

Filho do poeta A. M. Pires Cabral. Mas com um atirar de armas completamente diferente. Não fica nas ameias a ver, desce e vai á luta.


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ESTRELA DO ENTARDECER


Regressa em Julho com a sua escolta
de desejo e medo - o amor, onde
sempre vivi acima das minhas posses.

Agora guardo as razões que me deste
para escrever estes versos sobre ti
e tenho a alegria de voltar a ver-te

ao fim do dia, já a cidade sossega
em todas as praças: trazes da rua na boca
o ardor de um verão lembrado

que hei-de voltar a esquecer.
A esperança que nos junta é frágil
e breve é a estrela que nos guia.



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JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES (1967- )

Outro que trabalha ali no perímetro do Património da Humanidade sede in Porto. Cirurgião Plástico. Poesia feita sempre com dois passos atrás, sob o pretexto de que assim fazem "lá fora". Mas é assim que o Poeta por dentro a calça.


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os homens de hoje são engraçados dizem
"o vento é deus a respirar" enquanto mudam
a fralda ao mais novo. meus amigos não
fogem à regra um a um pousam o jogo e

saem para a capela (despedem-se de mim
como sombras roubando luz à parede) quase
os consigo imaginar voltando atrás noutra
vez para ver se ela realmente tinha fechado

o portão, sobre a mesa estão suas cartas
voltadas (longa pausa nesse jogo que nunca
chego a recolher) um a um regressarão

jurando fidelidade (aro dourado nos dedos
cigarro nos lábios em brasa) olhos na voz
do relógio para não chegar tarde a casa



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BÉNÉDICTE HOUART (1968- )

Nascida lá mas com mãe portuguesa e cá desde os sete, vive, escreve e traduz em Coimbra. As mulheres ganharam para elas uma poesia bem nova e bem fresca aqui. Mas atenção mulheres se quereis esta voz! E há mais... Poesia que é só deste milénio, sem grande diálogo com a geração. A poetisa diz gostar de... Drummond de Andrade. Ora bem...


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tenho um mamilo sempre erecto e
outro sempre murcho
ora bem,
a interpretação que faço do fenómeno
embora duvidando que entusiasme alguém
é a seguinte:
um pressente coisas de que o outro nem suspeita
coitado do primeiro
quando não há nada
coitado do segundo
se quiser arrebitar



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LUÍS FILIPE PARRADO (1968- )

Saltou para a ribalta com o seu segundo livro em 2012, portanto outro não dialogante? Não é bem, porque viveu atento. Mas notam-se os anos.


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COMER UMA LARANJA


Comer uma laranja
é como ingerir o próprio sol

com a boca cheia de luz
não há portanto
espaço
para palavras
sobre mim.



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LUÍS QUINTAIS (1968- )


Antropólogo, escreve sem geração, numa geometria e equilíbrio que não são frequentes nestes tempos.


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40


A selva escura, vejo-a agora nítida aos 40.
Numa antecipação do caminho que não meço
e que se abre de tão denso à minha frente,
numa escuridão que é apenas ignorância,
             despropósito, aventura -
certeira morte em incerto tempo.



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MIGUEL MARTINS (1969- )

Acabo de conhecer o Miguel Martins. Parece ser um hiperactivo. Um exibicionista, quase. Às vezes escreve muito bem, embora nem sempre saiba para onde vai. Escreve hoje, e muito.


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O DIABO EM ALTA DEFINIÇÃO


a caminho do Pátio do Salema
reparei num homem de pé, numa ruela, que assistia
à tourada por telemóvel

o pasodoble alumiava-lhe o rosto

Évora é um labirinto estranho, quase perfeito
e belo demais para o que contém



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JOSÉ MIGUEL SILVA (1969- )

O filho pródigo do "regresso ao real", é um pessimista enamorado. Talvez o mais capaz dos filhos dessa beberagem preparada por Joaquim Manuel Magalhães, tem produzido algo menos nos últimos anos. A sua poesia tem um saber contido a par de uma enorme capacidade para o Salto.


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O DIREITO DO MAIS FORTE À LIBERDADE - RAINER WERNER FASSBINDER (1974)


1.


Quem tem amor não tem
razão, tem apenas frio.
Não te confundas, cão
vadio, com chacais.
Pois o chacal é um animal
que tem sempre razão.


2.


Sou tão feliz. Estas lágrimas,
não liguem, é do álcool.
Vá - pago um copo
a quem disser que me ama!


3.



Não te deixes enganar, raposinho,
pelos modos bem-criados do chacal.
Não eras tu que dizias: " Há pessoas
que se lavam, e há outras que são limpas"?

Que não te impressione a toalha de linho,
o brilho dos talheres, o arroto de lavanda.
Repara antes no seu prato: reconheces
inocente, o acepipe? É o teu coração,

raposinho, isso mesmo, o teu coração.



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