segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Dez poemas = 114!

O tempo ainda não é muito. Reparo agora o quão severo fui para os primeiros anos. Ignorei Torga, Régio. E vou transcrever nos anos que se seguem poetas que serão possivelmente bem inferiores. Deixo ao leitor a responsabilidade da coda. Enquanto não a contagem continua. Uma contagem porém onde cada vez mais só os poemas falam.



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GIL DE CARVALHO (1954- )

Devo-lhe recolhas lindíssimas de poemas turcos, mongóis e sobretudo chineses. A sua poesia não existe. Os seus poemas são rastos, intervalos, a poesia reside fora do poema. E porém...


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A DIÁRIA


Um fósforo aceso no escuro Lisboa
Muito cedo. Passa do muro indigo
Às casas; e vai resgatando partes
Do arvoredo. Põe a traqueia em risco
Fedegosa - Sabias? Vamos para o emprego.

A pequena acrtiz procura trabalho
E deixa-se foder. Entram padrões
De consumo a erguer o riso muito
Mais em baixo: espectáculos de rua.
São argolas de um muro... presas
Onde o rio - bate, farmacopeia sua.

Enquanto dois velhos sonâmbulos
Ptão e Raz, concebem disto -  a fundo
Uma nova peça para antigos amos:
Cedo Lisboa raspada num fósforo cheira
Um pouco a terebentina e mar. Um gato

No casco, mija para entrar no segredo.
Por mais folhas que suba o sol
Segura mal velhos observatórios
A templos recentes. Tal como
O país, terá de escolher: ou menos
Puta ou melhor actriz.



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CARLOS ALBERTO MACHADO (1954- )

Trata-se de um açoriano tardio, sediado nas Lajes do Pico, mais a Companhia das Ilhas. Antropólogo de formação e teatreiro. Começou a publicar poesia tarde.


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Não disse as palavras certas
faltou-me o tom e o talento
não tires da minha boca
as palavras que não ouviste
a responsabilidade é tua já te disse
organiza como quiseres as palavras
e os silêncios
o ritmo certo da morte escolhe-o tu
a minha boca continua fechada.



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ANA LUÍSA AMARAL (1956- )

Assisti a uma conversa sua vai para tempos e percebi que não morávamos na mesma rua e que não residia em mim pena extrema por isso. O homicida às vezes diz "interessante", vira as costas e vai-se embora. Pena tenho por quem nasce no ano a seguir. Calha que conheço uma colega de carteira, toma! Poesia bem urdida, às vezes só isso.


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A MAIS PERFEITA IMAGEM


Se eu varresse todas as manhãs as pequenas 
agulhas que caem deste arbusto e o chão 
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para 
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs 
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além 
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência 
que o nada representa, veria que o arbusto não passa 
de um inferno, ausente o decassílabo da chama. 
Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os 
ramos, também a entendia, a essa imperfeição 
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes 
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse 
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu 
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e 
descontínua que foge ao meu comum. O devagar do 
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra 
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou 
a um neurônio meu, unia memória que teima ainda 
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária. 
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus. 




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MANUEL CINTRA (1956- )

É irmão mais novo de Luís Miguel Cintra. É homem também de teatro e... canta! A sua poesia nasce não no surrealismo mas nos surrealistas, parece-me.


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Primeiro a mulher
abre-se pernas rasgos de mãos ventres líquidos recebe
começa recomeça começa por acreditar

a carne move-se circulam palavras sangues esperas
os membors procuram-se chocam ao encontro dos becos
ao encontro dos ecos

Segundo a mulher
agarra o germe que passa cria obstáculos procura
absorve encontra fecha pernas tece meses projectos
vai acreditando

Terceiro a mulher declara
à sua volta fulminam os enxovais.

É uma história.
Se acaso a criança morre,
a mulher acreditou em vão; nos outros casos

Quarto a mulher



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ADELINO ÍNSUA (1956- )


Migrado em Guimarães, mais sua Pedra Formosa. Poesia contida, meticulosa. Suponho que será amigo do Carlos Poças Falcão, o que tem lógica.


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MARIS STELLA


1


O jardim de minha Mãe é um paraíso,
saíram comigo do ventre suas plantas e seus cuidados.
Tem a largura de uma campa
o comprimento de uma levada de flores.
Nele se ouve melhor o coro dos anjos
apesar das chuvas de fel e vinagre.
A alfazema do sono sobe dele à Via Láctea.
No jardim materno nasce a rosa das manifestações
e floresce a desigualdade espiritual em esmolas.
Nele há uma gota de sangue caída
em forma de flor crucífera.



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ABEL NEVES (1956- )

Tem um abrigo nos Pitões das Júnias, sem luz nem água, para onde vai quando o levam porque não conduz. Montalegre viu nascer um homem do teatro que assim se fez na Comuna. Boa poesia acontece, também.


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perdi o teu rosto
o de maio
e também o de junho com a cidreira
não há esperança
agora os dias são menos dias
diz-se que mais curtos
atrás das folhagens do verão
é uma hipótese para as pequenas aves
e talvez que bicando    voando
recuperem elas qualquer coisa
do que foi a tua passagem por aqui



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JORGE AGUIAR OLIVEIRA (1956- )

Mais um do planeta Sião que ainda sobrevive quer nas redes sociais quer publicando, aqui e ali.


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DORME


poder dormir
dormir o dia todo
todos os dias
pelos dias

podes ir dormir
dormir
ignorando emoções
as lágrimas

continua a dormir
a dormir
para acordares
somente
quando sentires
a festa da morte
na tua face

até lá
segue a dormir
no desconhecido
respirando
tranquilamente

vá, dorme



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JORGE SOUSA BRAGA (1957- )

Este, vejam lá, para além de médico trabalha na concorrência, no Santo António. Até temos uma doente em comum. A poesia tornou-se conhecida cedo. A sua irreverência.. juvenil? tornou a sua poesia precocemente conhecida. Algum recolhimento actual terá a sua lógica.


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UM PIRILAMPO


Estende a tua mão. Olha como arde... Não tenhas medo de lhe tocar. Um pirilampo pode passar a noite numa folha de trevo, sem que daí resulte qualquer queimadura.

Se tivesse que eleger um mestre - hipótese que me repugna um pouco - de certeza que me decidiria por um pirilampo como este.



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REGINA GUIMARÃES (1957- )

Não me é fácil aqui a escrita, ou moderá-la, porque conheço pessoalmente a pessoa. Não de perto mas a avaliação está feita. E aqui está o que de melhor o Porto tem hoje. Possuo o "Caderno do Regresso", extenso dário poético publicado em 2010 - na prática a poesia "de um ano". Os livros da autora são quase todos edições "pessoais", de difícil encontro. Poesia revolvida, trabalhosa. Com a ginástica apurada e tensa. Brilhante muitas vezes. Os "Três Tristes Tigres" é que eram...


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MINÉRIO


roubar ruído ao que toca,
e ouro à água corrente
roubar os dentes à roda
da fortuna
retirar todo o sentido
ao castigo
que faz vão e descabido
tudo quanto em nós se faz
arrumar lá para um canto
aquele antigo condão
de fechar os olhos cedo
e pedir ao sonho certo
que viesse e que durasse
até ao dia seguinte



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LUÍS MIGUEL NAVA (1957-1995)

Morreu assassinado em Bruxelas onde vivia há 9 anos. O seu "martírio" está mais do que canonizado. A sua poesia hoje menos, porque não fácil, e porque nela não cessam os envios à sua busca física - que terminou no seu apartamento numa determinada noite macabra.


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A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.




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