segunda-feira, 16 de outubro de 2023

A Lourdes.




Conheci-te pouco depois de eu voltar de Espanha onde tinha ido fazer uma valência de Cuidados Intensivos. Eras uma rapariga de Espanha e que vinha fazer aqui em Portugal uma especialidade médica.Fizeras exame para tal. Tu e uns quantos, alguns deles amigos para a vida depois. Isto foi há tanto tempo, Meu Deus! Soube agora que faleceste pelo sítio habitual.

Porque te lembro tanto se já não falo contigo há praí dez anos?

Estávamos em tua casa e uma mãe preocupada telefonava: a "X" ainda está ai? Já tinha saído com o namorado há bastante tempo mas era nossa função mentir e que bem o fazias.
Uma vez desmanchaste um pé e puseram-te uns fixadores externos que faziam barulho. O teu caminhar sonoro pelos corredores do Hospital ganhou foros de mito. 
Lembro-me quando me explicaste porque tinhas escolhido Pneumologia: a outra opção era Neurocirurgia. Tinha que ser uma especialidade que "mexesse".
Tinhas um irmão a estudar informática em Ourense. Através dele fiz algum dinheiro (50/50) a vender clandestinamente bebidas licorosas nos bares da terra, dados os excessos de ofertas destas que eu recebia e o facto incontornável de eu não gostar de whisky. 
A última transfega de material ilegal foi feita à noite numa rua ali em Paranhos, para um Ford Escort branco que tu tinhas. 
Eras galega mas de Vigo, rompias e rasgavas o teu caminho. Assim foi sempre, e a tua gargalhada devia ter sido patenteada.
Trabalhavas sem hesitação ou preguiça, fizeste a sala de um especialista a doutorar-se e que pouco aparecia. Esquecido o rapaz na avaliação, foi preciso corrigi-lo.
Tudo o que acima lembro não me pertence a mim, morreu agora contigo. Porque sem ti nada teria sido igual. 

Da última vez que falamos percebi o quanto a vida nos tinha afastado. E prometi algo que nunca cumpri: lutar contra isso. E verdade que nunca conhecemos ninguém. E de ti na realidade acabo por não saber nada, só este anedotário. Mas nunca houve melhor não conhecer que este meu, pequenino, delimitado no tempo, contigo.

PS.:  fotografia roubada do mural da Lourdes, postada pelo Dr Rui Rolo a quem, muito agradeço e peço desculpa pela cópia.

sábado, 7 de outubro de 2023

He's been outsmarted!




Nunca me custou tanto ir de férias. No SNS reside praticamente todo o meu percurso profissional. O SNS vive um desafio nunca antes vivido. Não sei se o SNS tal como o conhecemos chega ao fim deste ano.
Tenho 59 anos. Licenciei-me em 1988. Fiz o Internato Geral - que então era de dois anos - e ingressei na especialidade de Medicina Interna em 1991. Optei por fazer o Internato em exclusividade, o que assegurava algum reforço remuneratório e uma segurança de contrato de 18 meses no fim do Internato. 
Estes 18 meses foram mesmo assim curtos para a minha alocação profissional definitiva ao meu Hospital de origem - o São João - e trabalhei alguns meses na Medicina Interna de Gaia onde fiz bons amigos. Reentrei em exclusividade em 2002 ou 2001, já nem me lembro bem. Assim foi. Passados 20 anos, não vou chorar pelo leite derramado. A exclusividade obrigava-me a um horário de 42h - que ainda hoje mantenho - e dava-me dois suplementos remuneratórios, o da exclusividade e o devido ao horário acrescido. A exclusividade foi assumida como cara pela tutela em 2005 e extinta. 

Enquanto interno trabalhei sempre 24 a 36 horas de urgência por semana. Com especialista 12 a 24. Nunca trabalhei menos de 50 horas por semana, muitas semanas foram de 60 horas ou mais. O meu percurso profissional não é um exemplo nem um modelo para ninguém. Foi o que foi. Hoje penso que tenho sorte por ter 59 anos. O mês passado trabalhei de noite pela última vez. Por lei podia ter acabado com as noites em 2014. Porque fiz noites estes últimos nove anos? Porque ainda as conseguia fazer com qualidade e porque precisava. Parei o mês passado antes que algum doente me explicasse - a custas próprias, não minhas - que estava  a trabalhar no turno errado. 

Repito não me ver como exemplo para ninguém. Em algumas coisas, aliás, vejo o meu percurso com algo hoje a evitar. 
Quer o Interno quer o Especialista de Medicina Interna ganham hoje comparativamente menos do que eu ganhava. E sabem mais e melhor. Para terem um ordenado digno da diferenciação adquirida fazem e fazem horas extraordinárias, trabalham em mais do que um sítio como prestadores de serviços a certas e determinadas empresas.
Falei aqui frequentes vezes do Internato de Especialidade. Que o Ministro de Saúde (MS) (que já foi ele também Interno) recusa colocar como o primeiro degrau da Carreira Médica. Os Internatos de Especialidade duram em média cinco anos. O meu Exame de Especialidade foi em 1997, tinha eu 33 anos por fazer. Só então entrei - aos 33 anos - na excelsa Carreira Médica. Os Internos são os vasos capilares do SNS. Parando os Internos o SNS pararia, sem mais. 

Isto não pode continuar. O terrível modelo de Dedicação Plena, onde a obrigatoriedade de Horas Extraordinárias (HE) duplica, os descansos após trabalho em fim-de-semana desaparecem e o sábado passa a ser dia útil, é uma espécie de Gaiola  (não muito) Dourada, uma nova escravatura no Séc. XXI.

É tempo de o MS dar sem exigir nada em troca. Aos médicos muito é devido já há muito tempo. Eu compreendo o desespero do MS. Com esta escusa às 150h de HE, completamente dentro da lei, a ser assumida por um movimento inorgânico mas a generalizar-se de médicos jovens e menos jovens, a espinha dorsal do SNS, como dizem os ingleses, HE'S BEEN OUTSMARTED. Isto das melhores médias devia servir  para alguma coisa e não me lembro do Manuel Pizarro ter sido um aluno de Faculdade particularmente brilhante.

Demore esta situação mais do que alguns dias e pessoas vão morrer que não deviam ter morrido