segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

O Américo.

O Américo tem 48 anos. Tem a cara acastanhada pelo sol, e parece assustado. Protesta pelo tempo que esperou. Chamei-o cinco minutos antes da hora marcada. Terá tido, terá tido - uma ressonância magnética semeou algumas dúvidas... - um acidente vascular cerebral no ano que passou. Do qual recuperou na totalidade. Fumador inveterado e alcoólico a tempo inteiro, as suas artes eram as das obras. Acabaram as obras mas não o tabaco e a bebida, para esquecer o desemprego, o tempo que morre sem parar. Deixou por completo de beber no dia que entrou no hospital e assim continuou depois. Alguém com pena dele - assistente social? médico de família? - declarou-o oficialmente "incapaz", ele conta. Como resultado, diz ele também, não cobra subsídio de desemprego nem rendimento de inserção. Pensarão que vive no interior perdido, pensarão mal. Reside num bairro social em Ermesinde, sózinho. Sai de casa e entra em casa de noite. O que o Américo me conta, confesso, pode não ser inteiramente verdade, porque há muitas coisas que o Américo não entende, não sabe, não apreende bem, porque o Américo não sabe ler. Quando era pequeno nem terminou a segunda classe, lá perto de casa havia um negociante com muitos cavalos, o Américo só queria estar com os cavalos, enfim, os cavalos são bem mais interessantes do que as letras, os números... Chegou a estar emigrado na Bélgica, despediram-no, e enganaram-no  aproveitando-se de não saber ler, a carta de despedimento a dizer que foi ele que se despediu. No bairro o serviço social tem-no em lista de espera para umas aulas, mas não há gente que chegue, efectivamente como o Americo haverá poucos. 
E é por estas e por outras que ele não para de fumar, mal entrei na consulta, tinha vindo cá fora resolver uma situação extra-numerária,  vi-lhe o maço de Camel A vida está dura, rouba as matas, os eucaliptais para vender lenha, faz uns biscates na lavoura, umas podas, toma conta dumas ovelhas que a irmã tem... em Alfena, levanta-se enervado às quatro da manhã para lhes ir arranjar pasto. Negociei com ele a medicação, aspirina e oxazepam, cinco euros no total da receita. Com o despejar da conversa esqueci-me de lhe entregar um relatório que tinha escrito dando-o como apto para o trabalho, pensei depois em enviar-lho para casa mas - como entenderia ele o seu sentido, sendo analfabeto? Afinal, quem lê para o Américo?
A vida não está fácil para os Américos deste país. Saiu da consulta mais manso, reconhecido talvez, e parece-me que virá à seguinte cumprindo a medicação e depois de controlar uma estenose da artéria vertebral que tem. Desempregado na mesma, isso sim, claro.

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