"Levantar-se, ir à cozinha buscar pão. Início de um enredo onde juntam outra voz à sua despedida. Chuva nos pitosporos, nas gazânias, nos cardos. Nas vidraças fechadas pelo temporal.
Cinzento ultramarino do crepúsculo. Chegar do supermercado com um saco branco. Retirar as cebolas, o leite, os cereais. Pegar na faca, descascar uma pera, sorrir. Em breve ouvir a campainha e a tua voz, primeiro pelo intercomunicador.
As camisolas acrílicas das pessoas de domingo. Os seus grossos gritos sobre coisas banais. Como chamam cães, se transformam em detritos. A caminhada bruta dos sapatos, os gestos pesados. Escrever sobre o esterco das repressões.
Das aves que nas estacas dos arbustos recolhem a humidade da manhã uma sobe ao peitoril. Gris e esverdeada uma canção junto dos vidros. No calor do quarto a aparente liberdade do canto, essa ave: decrever como regressa ao manto rasteiro dos zimbros e depois alcança o mistério dos canaviais, perdida na indefinição da luz.
A sombra da janela na parede. O sol de outono a descer no mar. O arbuto, o funcho, a murta. Uma discreta música por onde se pressente a quimera da vida. Adormecer.
Contar acerca do aiôco: sem concha, mas semelhante às lapas; do tamanho das uvas tintas; escondido no vazio dos cachos; ao apertá-lo ser ferido por uma picada mortal."
Joaquim Manuel Magalhães, Uma Luz Com UmToldo Vermelho, ed Presença, 1990.
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