domingo, 13 de setembro de 2015

extracto - à sorte, quase - de Mrs Dalloway, de Virginia Wolf.


"Era uma confissão terrível - pôs outra vez o chapéu na cabeça -, mas agora, com cinquenta e três anos, já quase não precisamos dos outros. A própria vida, cada momento, cada gota, aqui, neste instante, agora, ao sol, em Regent's Park, era o suficiente. Era até de mais. A vida inteira era demasiado curta para conseguirmos tirar dela, agora que conquistámos esse poder, todo o seu sabor; para lhe extrair cada onça de prazer; cada faceta de sentido, que são ambos muito menos pessoais. Era impossível que ele alguma vez tornasse a sofrer como Clarissa o tinha feito sofrer. Durante horas seguidas - graças a Deus que podemos dizer estas coisas sem que ninguém nos ouça! -, durante horas e dias nunca pensou em Daisy.


Podia então estar apaixonado por ela, lembrando-se do desgosto, da tortura, da extraordinária paixão daquele tempo? De qualquer maneira era muito diferente - muito mais agradável - porque, para falar verdade, era ela quem estava apaixonada por ele. E talvez fosse essa a razão por que, quando o navio largou, ele sentiu um extraordinário alívio, desejando apenas ficar sózinho; e ficou aborrecido por deparar com todas as pequenas atenções dela - charutos, bloco-notas, uma manta de viagem - no camarote. Se toda a gente fosse honesta diria a mesma coisa; ninguém precisa dos outros passados os cinquenta anos; ninguém está para continuar a dizer às mulheres que elas são bonitas. Era isto que a maior parte dos homens de cinquenta anos diria, pensou Peter Walsh, se fossem sinceros.
Mas então aquele súbito assalto de emoções - a crise de lágrimas daquela manhã, que significava tudo aquilo? Que poderia ter pensado Clarissa a seu respeito? Provavelmente que seria um parvo, e não seria a primeira vez. Era o ciúme que estava no fundo de tudo aquilo - o ciúme, que sobrevive a todas as paixões da humanidade, pensou Peter Walsh, brandindo o canivete. Tinha encontrado o Major Orde, dizia Daisy na sua última carta; fazia-o de propósito, ele bem sabia; dizia para lhe fazer ciúmes; via-a a franzir a testa enquanto escrevia, procurando o que poderia escrever para o ferir; eembora não lhe fizesse diferença, ficava furioso. Todo o aparato da viagem a Inglaterra para consultar advogados, não era para casar com ela, mas para a impedir de casar com outro. Foi o que o torturou, o que o venceu, quando viu Clarissa tão calma, tão fria, tão preocupada com o vestido ou lá que era; pensando em tudo o que lhe teria evitado, naquilo a que ela o reduzira - um velho burro a choramingar e a fungar. Mas as mulheres, continuou a pensar fechando o canivete, não sabem o que é a paixão. Não sabem o que isso significa para os homens. Clarissa era fria como gelo. Tinha-se sentado ao pé dele no sofá, deixara-o pegar-lhe na mão, dar-lhe um beijo na cara...
Era ali que devia atravessar."

Sem comentários:

Enviar um comentário