quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Armstrong e os anos negros do ciclismo - e dos ciclistas.



Vi no cinema vai para dois anos um famoso documentário sobre Lance Armstrong. Talvez o documentário esteja mais perto da realidade do que o filme "The Program" que agora estreia, embora realizado pelo meu amigo Stephen Frears. 
Quem tem alguma memória velocipédica sabe que no ciclismo, desporto horrível de esforço e sacrifício, sempre houve doping. Até ao princípio dos anos noventa aquele que havia - anfetaminas e corticóides - não decidia vitórias, apenas ajudava a recuperar, e esticava o esforço e permitia sobreviver às dezenas de critériuns de fim-de-semana onde se ganhava o dinheiro. Ninguém acha que Coppi, Anquetil ou Merckx venceram porque se dopavam. Mas dopavam-se. É Greg LeMond, o outro americano a vencer o Tour, que diz que no início dos anos noventa subitamente o pelotão começou a andar depressa, mais depressa, e mais depressa. O pelotão... todo! E ele abandonou. Outros grandes corredores desse tempo, o francês Charly Mottet, o  americano Andrew Hampsten contam hoje que se aperceberam que sem tomar o novo cocktail nunca ganhariam por ex. um Tour, e decidiram de moto próprio apenas ganhar coisas mais pequenas, ou abandonar. Em 1991 foi a primeira vitória no Tour de Miguel Indurain. Indurain dominou o desporto por cinco anos. Percebido desde jovem como um ciclista muito bom, amadureceu... tarde. Nunca teve um teste de doping positivo. Mas a verdade é que naquele tempo não se testava o que interessava, a EPO. E os seus grandes adversários no pelotão, Tony Rominger ou Piotr Ugrumov, eram conhecidos utilizadores de EPO - o nickname de Rominger era EPO-Tony, Ugrumov correu na Gewiss-Ballan, a primeira equipa de ciclismo a ter - que se saiba - um programa organizado de doping. A Gewiss-Ballan em 1994 venceu a clássica belga Fleche Wallone atacando com três homens... imparavelmente e tomando o pódium de assalto. A partir daqui, se as outras equipas não tinham passaram a querer ter doping organizado. As equipas passaram a ser tão boas quanto a sua equipa médica. A famosa frase "não se consegue transformar um burro num cavalo de corrida" estava agora obsoleta. Voltemos a Indurain. Um rapaz simpático e acanhado de Navarra, um herói nacional espanhol, não há um elemento do pelotão profissional que alguma vez se tenha queixado do seu comportamento. Era um "patrão" discreto. Hoje os estudiosos do ciclismo colocam as suas performances no Tour ao nível do ciclismo "mutante". Não preciso explicar o que isto quer dizer. 

Em 1996 acabou a era Indurain. Os anos entre "patrões", neste caso entre Indurain e Armstrong, são habitualmente aqueles que fornecem corridas de ciclismo mais incertas e animadas. Estes foram os anos de Pantani, de Bjarne Riis e de Jan Ullrich. Não preciso de fazer a história do doping destes ciclistas. Bjarne Riis foi efectivamente um "burro" que se transformou em cavalo de corrida - era conhecido no pelotão pelo "Sr. 60%", pois esse era o seu hemtócrito habitual. A sua vitória no Tour é a mais vergonhosa da história da corrida. Pantani foi Pantani. Morreu por OD de cocaína e é ainda hoje um herói nacional na Itália. Independentemente das suas qualidades, que eram óbvias, não terá vencido uma prova sem EPO. Ullrich ia ser o "senhor que se segue", o novo patrão, talvez, mas eis que chega Armstrong.

E agora chegamos ao prato principal: o ano de 1998. No Tour ganha Pantani, depois de também ganhar o Giro. Ninguém voltaria a fazer esta dobradinha. Contador já tentou duas vezes e não conseguiu. No ano anterior ganhara Ullrich e o segundo fora um francês, Richard Virenque, um trepador que, curiosamente se transformara num todo-terreno. Corria na equipa Festina, uma marca de relógios francesa. Em 1998 o soigneur da equipa foi preso na fronteria franco-belga com um carro da equipa cheio de... tudo. Toda a equipa foi expulsa, Virenque saiu da corrida em lágrimas, negando tudo para dois anos admitir o óbvio, que se dopava. Após a devida suspensão voltou a correr mas nunca mais para pódium. Pantani será um herói nacional mas Virenque, não estando ao mesmo nível, é hoje por hoje comentador para a têvê e faz um anúncio televisivo muito curioso para a... Festina. Some guys never learn.

E chega o ano de 1999. Vamos fazer um pouco a história de Lance Armstrong. Nascido em 1971, virou profissional aos 21 anos e foi Campeão do Mundo surpresa em 93. Continuou a ganhar algumas provas de um dia, etapas, etc. Era um ciclista forte, rápido, um puncheur. O seu perfil estava decidido. E dopava-se como toda a gente, é sabido. Em 1996 sofre o diagnóstico de tumor do testículo metastizado ao abandonar o Tour com febre. Em 1998 volta ao activo, a doença debelada. E vem como era expectável que um bom ciclista - que Armstrong era - viesse após uma luta contra o cancro: mais leve. Quem conhece o ciclismo sabe o quão importante é isto do peso. Armstrong foi 4o na Vuelta de 1998 e venceu o seu 1o Tour em 1999. O resto é história. Armstrong teve a melhor equipa de doping da história do ciclismo a apoiá-lo, isso é inegável: Michele Ferrari era o nome do médico. 



Há quem diga que se não tivesse sido Armstrong o Ullrich teria ganho tudo, etc. Isso não é verdade. Ullrich dopava-se igual, só que pior. Era pregiçoso, chegava pesado ao Tour, "não fazia os trabalhos de casa". Por isso Armstrong foi tão popular durante tanto tempo. O seu trabalho e dedicação ao ciclismo, digo, ao objectivo de ganhar o Tour e ser o "patrão", era óbvio e meticuloso. E, depois, a sua dedicação às actividade anti-cancro eram o perfect coverup. Que era um "patrão" frio e que não perdoava viemos depois a saber. A partir de um determinado momento a glória e o pódium torna-se um vício e queremos sempre mais. E a mentira vira apenas uma realidade alternativa.

O doping no ciclismo não começou com Armstrong nem terminou em Armstrong. Na verdade todos os resultados do ciclismo entre os anos de 1991 e 2008 - o ano de introdução do passaporte biológico - devem ser considerados com um grão de sal ou, talvez, com uns quilos de sal. Hoje o ciclismo é mais justo, é mais limpo. Haverá doping mas o passaporte biológico não permitirá as diferenças que já houve entre os corredores limpos e os corrredores trapaceiros.

Duvido que nos anos mais próximos se faça um filme sobre Pantani, ou Ullrich ou Virenque. Pantani é intocável. Morrer no caso dele foi a opção lógica. Nibali recebeu em 2014 da mãe de Pantani uma das camisolas amarelas do filho como amuleto para o Tour e Nibali cumpriu, ganhou - assumimos que sem doping. Como agradecimento a camisola amarela que Nibali ganhou nesse mesmo ano está hoje em dia em exposição no Museo Pantani.

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