A Maria Antónia apareceu-me na consulta em 94, 24 anos recém-feitos. Um pré-operatório - estenose bilateral das artérias renais - ia ser operada. Medi-lhe as tensões, normotensa. Volto a medir, também. Não foi operada. Teve tempo para, sim, em vinte anos desenvolver uma hipertensão pequenina, e começar a tomar pastilha e meia com devoção. Os rins? Recomendam-se. A Maria Antónia trabalhou numa empresa de confecções em S. Torcato 25 anos. As consultas eram em Agosto para não faltar nenhum dia. A empresa fechou - ficou sem receber uns meses, de indemnização nada. Já voltou a trabalhar um ano, ao fim deste rua e mais dois meses para o calo. O marido era canteiro, despediram-no. Anda na construção civil. Uma filha emigrou para França, é encarregada numa lavandaria. Já não volta, o marido é de 2ª geração, moram perto da fronteira com a Suíça o que quer dizer - noutro mundo. O outro filho tem 18 anos, talvez entre na faculdade em Braga à noite, um trabalhito de dia para amenizar. Bolsa talvez não haja porque os pais têm uma casa - como se comêssemos telhas e vestíssemos tijolo, como se terem construído aquela casa nem sei com que sacrifícios fosse o pecado original.
A D. Sílvia mora na Silva Escura e tem 85 anos. Em 2012 perdeu a fala, afasia digo, durante um internamento na Cardiologia por um enfarte agudo do miocárdio. Agora fala bem e claro tudo o que tem para dizer. Queixa-se da Médica de Família que lhe disse que para as mãos "não havia nada a fazer", sendo "mãos de velha". A D. Sílvia não gosta da torteza dos dedos, cada um apontando diferente caminho, sim, as artroses, e quê? Vou auscultá-la e ela diz que se despe "como a brasileira, que se despe em qualquer lado". Auscultação enxuta, fico contente.
A D. Sílvia foi a 2ª mãe da Arminda, hipertensa de 57 anos e descontrolo completo, até que enviuvou. Agora está viúva e alegre e as tensões estão controladas. Cozinha para fora e hoje cozinhou para mim, traz-me rissóis para o almoço. Ah, e tem um namorado que não se assusta com o facto da Arminda ter um filho parvo, que portanto sai ao defunto pai.
A Isaura tem 48 anos e uma irmã emigrada na Alemanha. Visitou-a em 97 e teve um contacto fugaz com o SNS alemão por delírio psicótico de prejuízo - alguém a queria envenenar. Já voltou a ter algumas crises similares mas em 2008 a crise revestiu-se de características diferentes: tinha realmente um tumor do estômago com células em anel de sinete. Teve sorte: "Não se observam imagens de permeação linfática. Não se observam sinais de invasão venosa. Não se observam sinais de invasão perineural. Não há representação da neoplasia nas margens cirúrgicas. Os anéis de sutura automática não estão invadidos. Não se identificam implantes peritoneais." E 0 em 25 gânglios invadidos. Não voltou a nenhuma consulta para seguimento. Acha que foi tudo um complot dos cirurgiões. Recusa repetir exames. "Eu era tão bonita, veja a cicatriz que me fizeram!". Nunca permiti que ma mostrasse. Pergunta-me como tenho estado. Desejamo-nos mutuamente um bom fim-de-semana.
O Sr. Pacheco tem 71 anos e foi atirador em Cabinda 2 anos. A cabeça descarrilou na Alemanha uns dez anos depois mas ele jura que foi da guerra. Toma a medicação e anda bem. É brusco, directo, dedicado. Está casado e olha pelos netos. Tem um minimercado. Trouxe-me umas vagens que diz serem australianas e que são compridas e torcidas - "não é preciso tirar nada, é só cortar e cabeça e depois, zuca zuca zuca, aos bocadinhos, uma maravilha!". Ah, e ovos. O meu jantar, hoje.
Como não gostar desta gente!
Claro que os nomes não são estes nomes...
Sem comentários:
Enviar um comentário