A Maria Amélia era professora, licenciada em Filosofia. Dezasseis anos a sentir-se inútil, um estorvo, algo desnecessário na vida que acontecia cá fora. Todos lhe diziam que não. Todos lhe mentiam. E, depois, sentia-se a envelhecer. Se a sua área fosse não filosofia mas sim, sei lá, limpezas. Ninguém esquece como se limpa, é esfregar e pronto, esfrega-se e vê-se, literalmente vê-se se ficou limpo ou não. Mas ela ontem já não se lembrava daquele filósofo daquele século, e no outro dia...
Pode ou não ter sido a tentativa de cortar os vasos cervicais que lhe provocaram o internamento por trombose cerebral. Os exames, como muita da filosofia, ficaram a meio diagnosticar. Veio parar à minha consulta. A Maria Amélia deu-me o prazer de frequentar a minha consulta durante três anos. Ironizava com o atraso das consultas, com o seu excesso de peso, com os seus infortúnios no ginásio. Perguntava-me se ia ter Alzheimer e eu perguntava-me como a mais inteligente das minhas doentes podia sofrer desse - e com esse - medo. Um dia veio com uma máscara equimótica fantástica, a cara parecia ter sofrido uma sessão de tortura, tinha caído. Rimo-nos imenso com isso. Ela parecia bem, parecia. É a frase fodida do costume. Há aproximadamente um ano apareceu-me diferente. A sentir-se inútil, um estorvo, um empecilho para a vida de todos que a rodeavam. Senti-me incluído nestes que ela tanto atrapalhava. Fiquei tonto, agoniado. Liguei a máquina de brincar, ela não prometeu voltar. Ela não prometeu voltar. Um mês depois iludiu a vigilância da família - dedicada. Pegou no carro, foi até à praia de Leça, deixou-o correctamente estacionado mas sem o fechar. E entrou pelo mar dentro.
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