quinta-feira, 5 de maio de 2022

Algumas coisas sobre a Crimeia.

 


A Crimeia é um losango peninsular pendurado da barriga da Ucrânia. Não é pequena, tem 27000 km2 aprox., embora represente apenas 4% da área da Ucrânia, e se formos comparar com a superfície total da Rússia, nem é bom pensar. A Crimeia representa para a Rússia (e também para a Ucrânia) de alguma forma o "seu" Algarve, geograficamente e historicamente. Conquistada no século XVIII aos Otomanos, deu ao Império Russo o acesso definitivo ao Mar Negro. A metáfora pode seguir, pois muitas cidades da costa da Crimeia foram e são destinos populares de férias, e, por outro lado, a conquista foi feita contra um potentado e uma população que então era predominantemente muçulmana. Dois países mas um só "Algarve". Portanto... 

Vinte coisas sobre a Crimeia:

Um istmo largo de 7 km une a Crimeia a norte ao resto da Ucrânia. Um braço de mar largo de 3 km apenas separa a Crimeia a leste da Rússia ou separava, hoje existe uma enorme ponte a ligar a Crimeia à "Pátria-Mãe" Russa. Este estreito de Kerch é a porta de entrada para o Mar de Azov, um braço do Mar Negro onde, por ex., fica a cidade portuária de Mariupol. Apesar de as leis dos mares obrigarem a uma circulação sem restrições neste estreito, com frequência os barcos russos interceptaram e chegaram mesmo a arrestar barcos ucranianos.

A Crimeia é constituida por uma zona de estepe fértil, produtora de cereais, frutas e vinho, que progride na costa sul para uma cadeia montanhosa que constitui a beira sul da península, com a altitude máxima de 1545m. Esta cadeia montanhosa separa-se a sul do Mar Negro por uma plataforma estreita de pouco kms que na ponta sul se anula. As montanhas apagam-se no extremo sudoeste para dar espaço a Sevastopol.

Nas montanhas da Crimeia estão os restos fortificados de uma seita judaica que teve especial importância na Crimeia:  os Karaítas. A fortaleza de Chufut-Kale foi abandonada no séc XVIII  quando foi permitido aos Karaítas viver onde quisessem na Península. Os dirigentes da seita deram-se a grandes trabalhos para tentar provar aos Czares que não partilhavam a culpa do assassínio de Cristo dos restantes judeus pois na Antiguidade já viveriam na Crimeia, constituindo os herdeiros duma tribu perdida de Israel que teria migrado para Norte (!). Os Czares parece que acreditaram E assim os Karaítas escaparam ao anti-semitismo da Rússia Czarista. O mesmo aconteceu quando da invasão nazi. Os nazis "inventaram" uma origem "goda" para os Karaítas e pouparam-lhes a vida. Os soviéticos não foram tão caridosos mas não houve deportações em massa. A maior parte dos Karaítas no entanto emigraram, quer para Israel quer para os Estados Unidos. Como que acreditando na sua própria mentira durante o séc. XX foi defendida uma origem populacional turca e na União Soviética os ritos perderam muito do seu carácter judaico. Os estudos genéticos apontam-nos como judeus, ponto. Haverá ainda uns 500 karaítas na Crimeia.

Os Nazis resistiram a acreditar na origem não-judaica dos Karaítas e pediram a opinião a vários rabis Judeus. Estes confirmaram essa asserção, a de que os Karaítas não eram Judeus. Salvaram assim, supomos que conscientemente,  milhares de vidas.

A Famosa Conferência de Yalta que aconteceu em 1945 entre Estaline, Churchill e Roosevelt localizou-se na cidade-balneário mais conhecida da Crimeia e do mesmo nome, situada nessa beirinha sul, protegida pela montanha. A Conferência realizou-se mais precisamente no Palácio Livadia, a antiga residência de verão dos Czares Russos. Na votação para as Sete Maravilhas da Ucrânia, em 2007, o Palácio Levadia ficou em... 8º lugar.

Outras cidades-balneário têm nomes com comprovada origem grega, eg Feodosia ou Eupatoria. Eupatoria fica no oeste da península e possui uma lindíssima mesquita obra de Mimar Sinan, o arquitecto da mesquita Suleymaniye de Istambul (séc XVI). Feodosia fica na costa leste e fica à sombra de um castelo construído por Genoveses. Os Genoveses dominaram o comércio do Mar Negro e muita da costa da Crimeia durante os séculos XIII-XV. Em Feodosia houve um enorme mercado de escravos que prosperou sob o domínio do Kanato da Crimeia.. De notar que a etimologia da palavra "escravo" procede da palavra "eslavo", pois milhares de eslavos apanhados nas estepes a norte eram vendidos como escravos para os Reinos do Próximo Oriente.

Mas o sinal mais evidente da antiga presença da Grécia na Crimeia é o conjunto de ruinas da cidade de Chersonesus e o seu entorno rural, constituído como Património da Humanidade em 2013, um ano antes da invasão russa. O conjunto monumental fica muito perto de Sevastopol, a atestar a localização estratégica deste porto. Para além dos restos de edifícios antigos, existem restos das divisões da terra, da sua organização. Chersonesus subsistiu com terra viva até ao séc. XV, e durante muitos séculos o seu entorno era o maior exportador de vinhos do Mar Negro.

A população da Crimeia tem pouco ou nada a ver com a população do Donbas. O grosso da população do Donbas é na mesma ucraniana embora russo-falante. A maioria da população da Crimeia é russa, ponto. Não era assim até o início do século XX mas uma imigração russa sempre favorecida pelo estado e a deportação maciça dos Tártaros da Crimeia (a população nativa original) por Estaline para a Ásia Central virou o tabuleiro étnico. Os ucranianos pelo seu lado nunca foram a maioria étnica. 

Os Tártaros são um povo da família turca que migrou, integrado nas invasões mongóis, para ocidente, tendo a posteriori criado vários estados nas estepes russas, de sorte variável. O estado que durou mais tempo e que foi mais marcante foi o Kanato da Crimeia que, aliado aos Otomanos, sobreviveu até ao final do séc.  XVIII, quando foi conquistado e extinto por Catarina, a Grande. Na pequena cidade de Bagçasaray, no interior da Crimeia, fica o antigo palácio dos Kãs da Crimeia, com sua mesquita, harém, zonas de residência, jardins, cemitério. Os trabalhos de restauro executados pelos russos em 2017 não terão corrido muito bem.

A gastronomia original da Crimeia é a gastronomia Tártara. Sobre itso parecem estar todos de acordo.

A anexação da Crimeia aconteceu entre Fevereiro e Abril de 2014 em resposta à Revolução de Maidan. O Presidente ucraniano em fuga, Vyktor Yanukovych, pediu por escrito a 1 de Março que Vladimir Putin enviasse tropas para repor a legitimidade e a segurança na Ucrânia. Mas as tropas russas já tinham entrado disfarçadamente na Crimeia 2 dias antes e a 2 de Março dominavam a totalidade da península. Tinham antes efectivamente acontecido manifestações pro-russas em Sinferopol, sim, tinham acontecido. Pouco depois fez-se um referendo onde 97% dos votantes optaram pela anexação.  Quem mais protestou contra a invasão russa da Crimeia foi a minoria tártara. Alguns foram expulsos, muitos simplesmente fugiram para o Ocidente, para a Turquia. Os Ucranianos fugiram ou "mudaram de pele": os números após a anexação apontam para menos 35% ucranianos do que antes. 

No referendo para a independência da Ucrânia a população da Crimeia votou maioritariamente a favor da independência. Mas a Crimeia era uma "República Autónoma SS" dentro da RSS da Ucrânia, pelo que esta autonomia criou sempre muita fricção entre a Crimeia e Kiyv. Crimeia desenhou a sua própria Constituição, que a Ucrânia primeiro aceitou e depois recusou. Em 2014 Kiyv tinha limitado bastante a autonomia da Crimeia. E tinha recusado a lei que defendia o uso da língua russa onde ela fosse considerada etnicamente relevante. Na Crimeia quase não se fala ucraniano. A Russia inventou os resultados do referendo. Mas naquele momento talvez a anexação democraticamente tivesse vencido. Hoje em dia a Crimeia tem a autonomia própria de qualquer República Russa: nenhuma. As liberdades civis não existem para as minorias nem para as opiniões divergentes. 

A Crimeia é um destino turístico e tem um site em inglês muito interessante chamado "Visit Crimea". Lá é referido que no 1º semestre de 2019 mais de 2 milhões de turistas tinham entrado na Crimeia, mais de metade através da famosa Ponte da Crimeia. Sendo um site pos-anexação, faz questão de referir que 10% dos visitantes eram ucranianos. No lindíssimo vale de Panagia, no meio das montanhas da Crimeia, fôra inaugurado o Museu Universal das Línguas, onde se podia ouvir reconstituições de como seria ouvir falar Grego Antigo, Maia, Sumério... as línguas, as línguas.

Sevastopol não pertence propriamente à Crimeia. Cidade criada a 1783 para ser a sede da Frota Russa do Mar Negro, é uma cidade com um único projecto na vida que é esse. Por isso é uma "Cidade Federal Russa", um estatuto muito específico só partilhado por Moscovo e São Petersburgo, tal a sua importância. No tempo soviético era uma "cidade-fechada", para lá entrar era preciso uma autorização especial. Sendo a cidade mais populosa da Crimeia, também votou a favor da independência da Ucrânia em 1991 (57% a favor, abstenção de 40%). Em Sevastopol a esmagadora maioria dos habitantes é russa. Com a independência ucraniana o porto passou a ser o pouso de duas Frotas do Mar negro, a Russa e a Ucraniana. Uma convivência muito difícil. Sevastopol (o porto) foi "alugada" pelos russos, tendo como contrapartida eg a promessa do fornecimento de gás natural barato, até 2042. Em 2014 a Frota Ucraniana foi tomada pelos russos, que só devolveram depois parte. E o contrato de aluguer foi esquecido.

A Crimeia foi palco de guerras bem mais sangrentas do que a Anexação de 2014, dada a sua localização estratégica. A Guerra da Crimeia aconteceu entre 1853 e 1856 e começou por ser entre a Rússia e o Império Otomano. O Czar Nicolau I achou que conseguiria tornar todo o Mar Negro um mare nostrum, incluindo o Bósforo. França e o Reino Unido discordaram e apoiaram os Otomanos, avançando para a guerra com armas mais modernas e couraçados que dizimaram as forças russas. Sevastopol foi conquistada após um ano de cerco. Para os russos foi uma enorme humilhação e deu-lhes a medida do seu atraso perante as potências da Europa Ocidental.

A Península de Kersch é a península que a leste "sai" da península da Crimeia e que termina a 3 km do território russo de Krasnodar, quase fechando o Mar de Azov. Dela parte a tal famosa Ponte da Crimeia mandada construir por Putin. Na Península de Kerch estão os restos de várias antigas colónias gregas, a mais conhecida Panticapaion, onde hoje se localiza a cidade de Kerch. O Estreito de Kerch era chamado pelos antigos gregos de Bósforo Cimério, em contraponto ao Bósforo Trácio, onde se situa Istambul. Panticapaion chegou a ser a capital de um reino helenístico que sobreviveu uns séculos, fornecendo cereal ao império romano, por ex. O reino estendia-se pelos dois lados do estreito.

Para o norte de Kerch fica o Lago Syvash, uma longa constelação de lagunas que separam a cara nordeste do losango da Crimeia do Mar de Azov. Lagunas de águas paradas e nada profundas que no verão se transformam parcialmente em lama, sal, água putrefacta.  O Syvash também é conhecido pelo "Mar Podre" e é uma importante zona Ramsar (Convenção Internacional para a proteção das Zonas Húmidas).

A Crimeia foi o último reduto do Exército Branco em 1920. Quando o Exército Vermelho atravessou o Syvash e atacou as forças Brancas pela lateral, o seu destino ficou decidido. As últimas forças da Rússia Branca embarcaram dos portos da Crimeia com destino para Constantinopla, evacuando mais de cem mil militares e civis. Quem ficou para trás não terá sobrevivido aos bolcheviques.

É na Crimeia que todas as histórias começam ou acabam. O Principado de Teodoro-Mangup existiu desde o século XIII até 1475, com uma ligação instável ao Império Bizantino. Localizava-se nas montanhas da Crimeia. Sobreviveu 22 anos à conquista de Constantinopla, sendo portanto o último território "bizantino" a ser subjugado pelos Otomanos. O Principado era também conhecido como "da Gótia", pela aparente existência de um substrato populacional "godo" do qual depois se perdeu o rasto.

Cimérios, Citas, Alanos, Godos, Gregos, Romanos, Hunos, Cumanos, Bizantinos, Mongóis, Tártaros, Russos e Ucranianos. Nazis Alemães. A Crimeia o prémio apetecido. Ainda hoje.






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