sábado, 30 de abril de 2022

Bessarábia, Budjak e várias coisas sobre a Rússia, a Ucrânia, etc.



Talvez seja importante, nestes tempos incertos em que ver bem o que está acontecer será uma arte, conhecer de que partes se compõe o país chamado Ucrânia. Lembrando que a Ucrânia é, em extensão, o segundo maior país europeu, logo atrás da... Rússia.

Não sei onde anda um livro muito antigo, dos anos trinta do século passado, que eu antigamente lia com imensa atenção. Era um "Memento Larousse", uma enciclopédia condensada, e que tinha imen sos dados geográficos de interesse. Nos anos trinta os impérios coloniais europeus estavam na sua extensão máxima, incluindo o francês, de que este livro fazia vasta propaganda. Sobre a Rússia, ainda numa fase de transição após a revolução bolshevique, era dito: "(...) a Rússia é um país com muita sorte, pois ao contrário dos outros países europeus, tem contiguidade geográfica com as suas possessões imperiais." Portanto, a Rússia era (e será ainda) não um país mas um império. 




Sendo assim, é a Ucrânia uma ex-colónia? Vamos até ao nascimento da coisa chamada Rússia. A Rússia terá nascido no sul, de uma mistura entre tribos locais e da incursão dos escandinavos pelos rios das estepes abaixo. A primeira capital? Kiev. Ao longo dos séculos a bússola da Rússia, dos Rus acabou por girar para norte e para Moscovo, as terras do sul atravessadas e invadidas por populações do leste, cobiçadas pelos Otomanos do sul, e também pela coligação Polaco-Lituana do oeste. Kiev passou de ser a capital para ser uma cidade de fronteira, perdida e reconquistada várias vezes. Algures no crescimento da Rússia foi criada a noção da existência da Grande Rússia - as terras à volta de Moscovo,  da Rússia Branca - as terras mais a ocidente em fronteira com a Polónia, e da Pequena Rússia - a Ucrânia (cujo nome quer dizer "fronteira"). Não, a Ucrânia não é uma ex-colónia da Rússia. É mais uma cisão, um território que historicamente e culturalmente acabou por ganhar uma história própria e ganhou uma entidade única. Hoje a expressão "Pequena Rússia" é entendida pejorativamente.


Chegamos agora à Bessarábia. A Bessarábia é uma região geográfica que fica no leste da Europa entre os rios Prut (a oeste) e o Dniester (a leste). O Prut é um tributário tardio do Danúbio- A Bessarábia é portanto uma larga tira de terra que vai desde a costa do Mar Negro, a norte da desembocadura do Danúbio, em direcção a norte e oeste. Terra fértil, relativamente plana. Uma porta aberta para invasões, destruições, colonizadores. 



O sul da Bessarábia pertenceu ao Império Romano, tendo antes tido colonização grega. Posteriormente a sua terra foi disputada ente Bizantinos e Russos, depois entre Otomanos e Russos. Progressivamente a Bessarábia foi começando a fazer parte de uma entidade maior e com alguma correspondência étnica, a Moldávia, que se estendia para oeste do Prut até às montanhas da Transilvânia. E quem diz "moldavos" iria começar a dizer "romenos". A partir do início do séc XIX a Bessarábia fez parte do Império Russo, enquanto a Moldávia foi congregando terras à volta e deu origem ao Reino da Roménia em 1881. Depois da Revolução Russa de 1905 começaram as movimentações nacionalistas na Bessarábia. Depois da I Grande Guerra a Bessarábia primeiro declarou a independência, depois a sua união à Roménia. E assim ficou até à II Grande Guerra. A Rússia, que perdera o território, criou do nada (ou melhor, terra ucraniana) a RSSA da Moldávia numa pequena faixa de terra a leste do Dniester, ie, fora da Bessarábia. Essa faixa grosso modo ainda hoje existe, é a Transdnístria.

Na 2ª Grande Guerra a Roménia foi inicialmente obrigada a ceder a Bessarábia à União Soviética, embora depois transitoriamente a tenha reocupado. Muitos colonos de origem alemã foram evacuados para a Alemanha, a importante minoria judia foi praticamente toda deportada e morta ou morta directamente. No fim da 2ª Grande Guerra a Bessarábia constituia a RSSR da Moldávia incluindo a RSSA prévia (ie, a Transdnístria), perdendo os terrenos em que os "moldavos" eram minoria para a RSS da Ucrânia a saber: Budjak, ou as terras da Besssarábia que contactam com o Mar Negro, e um chapeuzinho a norte que hoje pertence à província ucraniana de Chernitski.

E

No colapso da União Soviética a independência da Moldávia surgiu como quase uma inevitabilidade. As minorias russas da Transdnístria e "gagauz" (uma população turca cristã ortodoxa do sul) tentaram a sua própria independência, respondendo a alguns excessos nacionalistas do novo poder, a Transdnístria conseguiu com o apoio de tropas russas, que mantém, os "gagauz" ganharam uma autonomia importante que mantêm. 


A Moldávia neste 30 anos tem tido um percurso curioso. A reunificação com a Roménia nunca foi um projecto unificador. O antigo Partido Comunista voltou com frequência ao poder através de eleições mais ou menos democráticas, perdendo-o depois da mesma forma. Hoje tem uma presidente da república e uma primeira ministra e uma política pro-ocidental. O país mais pobre da Europa e cuja maior exportação é o vinho, depende energeticamente por completo da Rússia.


E a Ucrânia no meio disto tudo? A Transdnístria tem uma população que se pode dividir em terços, um terço moldavos, um terço russos, um terço ucranianos. O governo não é democrático e o homem mais rico do país é dono do clube Sheriff de Tiraspol, que derrotou o Real Madrid em Madrid o ano passado. Tem hino, bandeira (com foice e martelo) e a moeda é o rublo. Embora a sua fronteira a leste seja com a Ucrânia, as relações transfronteiriças são escassas.




E a Ucrânia? Pertence-lhe então a região de Budzak, ou Bessarábia do Sul, a fértil terra que fica entre a Moldávia, a Roménia, o rio Dniester (a Ucrânia) e o Mar Negro. Adminstrativamente pertence à província de Odessa mas é uma região muito própria, um mosaico de gentes, ucranianos, búlgaros, moldavos, russos, turcos gagauz, judeus não, claro... e onde as comoções de 2014 não tiveram grande eco. A língua franca é o russo. A ligação com a Ucrânia é assegurada apenas por duas pontes duas. Esta invasão russa não seria nada benvinda.  Ah, grande parte dos russos são Lipovanos, ie, pertencem a uma seita ortodoxa que segue um ritual diferente. Fugiram da Rússia no séc. XVIII.



Até dava vontade de a visitar (a imagem acima é de lipovanos no delta do Danúbio).

Sem comentários:

Enviar um comentário