domingo, 19 de abril de 2020

Um vírus relativamente bonzinho.

1. Ontem era capa no Expresso a expressão de uma cientista portuguesa que dizia "Este é um vírus relativamente bonzinho." Por outro lado repetiam na SIC as imagens da alta de um homem com a minha idade das Infecciosas do meu hospital. Ele é dono de uma confeitaria aqui da Maia, donde seguiram hoje quatro rocas para o mesmo hospital. Ele sobreviveu ao mesmo "vírus relativamente bonzinho". Um de poucos, depois de entrados nos intensivos.

2. Quando tudo isto começou, isto do Covid-19, lembro-me de ter feito um screening rápido aos doentes que enchiam os intensivos do meu hospital. Internados em cuidados intensivos estavam dois doentes com pneumonia grave por Gripe A, bem mais novos do que eu. Ambos sobreviveram e tiveram alta, eu sei.

3. Hoje voltei pela primeira vez desde 17 de Março a visitar os meus pais, 82 e 93 anos de idade, em Ovar. Isolados como estão, ao cuidado de uma senhora que, com máscara e higiene de mãos frequente, os atende nas manhãs de 2ª a 6ª, visitei-os mascarado. Não os abracei, não lhes dei um beijo. Como substituição agarrei-me a uma cadela que por ali estava e sempre os acompanha que primeiro me latiu, estranhando o disfarce, culpando-me da ausência de mais de um mês.

4. Faz sol, as temperaturas roçam os vinte graus. A valerosa ministra da nossa Saúde volta a insistir que já passou o pico. Começamos a ouvir as palavras praia, missa. As escolas vão abrir, algumas, não tarda nada. Curiosamente nada de futebol. E continuam a pingar quinhentos positivos dia, trinta mortos também.

5. Chego a casa pela hora do lanche, no meu bairro um vizinho oferece uma sessão de karaoke a quem o queira ouvir e aos outros, porque o tempo e as regras de higiene pedem que se abra as janelas.

6. Este vírus não é para graças. Para além dos pulmões pode atingir cérebro, coração,  rins, a coagulação... Uma letalidade de 2% em cinco milhões, por exemplo,  equivale a cem mil mortos. Mas a praia, a escola e o turismo. Outra forma de ver a coisa é a mortalidade nos doentes que necessitam internamento hospitalar. Na gripe A esta mortalidade foi de 1-3%. Na Covid 19 esta mortalidade será dez vezes superior ou mais.

7. Este vírus não tem tratamento. Não tem.  Um ventilador não tem propriedades antimicrobianas.

8. Celebro o Professor António Sarmento do meu hospital,  que confessou,  caso isolado, o mistério que ainda é o Covid 19. Devo-lhe isto,  o diagnóstico de uma mononucleose infecciosa vai para trinta anos e a melhor aula sobre choque séptico que eu já ouvi, vai para dez. 

9. Quinhentos positivos e trinta mortos por dia. E o norte do meu país a manter uma visível transmissão comunitária. Não saio de casa sem máscara. 

10. Para quando um filme no cinema, entrar numa livraria sem hora de saída,  assistir a um concerto e trautear a voz aberta aquela canção? 

11. Uma sorte eu tenho, temos aqui por casa, os quinhentos positivos e as trinta mortes dia asseguram os nossos empregos. Não os  de  milhões. 

12. Este vírus acrescentou um grau de aleatório à minha vida e à  dos meus que eu não queria. Um aleatório que atrapalha. Morreu o Sepúlveda.  Safou-se o Fernando Rocha. Mas cuidado ó filho-da-puta, olha que a imunidade se calhar não é definitiva! Virá não uma vacina mas cem. Mas o vírus já se dividiu em três sub-estirpes. Dizem que o vírus, inteligentemente, para sobreviver vai adaptar-se a nós. E se o vírus se engana? 

13. Eis a lição deste vírus: nesta vida, se calhar, nada é definitivo. A não ser... 

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