"Os Dias do Abandono" foi o segundo romance de Elena Ferrante e confirmou a promessa do primeiro romance, aparecido dez anos antes. Porque gostamos dele?
Pode ser por trechos como este:
"Feriste-me, estás a destruir-me, e eu, ainda por cima, tenho de falar como uma esposa bem-educada? Vai levar no cu! Que palavras terei de empregar para falar do que me fizeste, do que me estás a fazer? Fala-barato! Lambes-lhe a cona? Metes-lho no cu? Fazes tudo o que não fazias comigo? Diz-me! Porque eu estou a ver-vos! Vejo com estes olhos tudo o que vocês fazem os dois, vejo-o milhões de vezes, vejo-o noite e dia, com os olhos abertos e com os olhos fechados! Mas, para não incomodar o senhor, para não incomodar os filhos do senhor, tenho de falar uma linguagem educada, tenho de ser distinta, tenho de ser elegante! Vai-te embora daqui! Vai-te embora, sacana!
Ele levantou-se de um pulo, entrou a ferver de fúria no escritório, meteu livros e cadernos num saco, interrompeu-se por um instante como que fascinado diante do computador, pegou numa caixa de disquetes e numa pequena provisão de cassetes.
Respirei fundo e corri atrás dele. Tinha na cabeça uma montanha de recriminações a fazer-lhe. Queria berrar-lhe: não tocas em nada; isso são coisas em que trabalhavas enquanto eu aqui estava para me ocupar de ti, fazer as compras, cozinhar, agora é tempo de ficar com alguma coisa para mim, deixa estar tudo onde está. Mas sentia-me aterrada pelas consequências de cada uma das palavras que dissera, das que poderia ter dito, tinha medo de o ter repelido, de over ir-se embora de vez.
- Mario, desculpa, anda cá, vamos falar os dois... Mario! É só que estou um bocado nervosa..."
Ou este outro:
"- Foi muito horrível? - perguntou-me ele, embaraçado.
- Sim.
- O que é que te aconteceu naquela noite?
- Tive uma reacção excessiva que destruiu a superfície das coisas.
- E depois?
- Caí.
- E onde é que foste parar?
- A parte nenhuma. Não havia profundidade, não havia precipício. Não havia nada.
Abraçou-me, manteve-me apertada contra o seu corpo por um momento, sem dizer uma palavra. Estava a tentar comunicar-me em silêncio que sabia, graças a um dom misterioso que lhe era próprio, tornar o sentido mais forte, inventar um sentimento de pelnitude e de alegria. Fingi acreditar"
Ou também:
"Comecei a mover-me, tinha a impressão de ser um simples sopro de ar preso entre as duas metades mal encaixadas de uma mesma figura. Era absolutamente inconcludente percorrer aquela casa conhecida. Todos os seus espaços se tinham transformado em plataformas distantes, separadas umas das outras. Uma vez, havia cinco anos, estudara-lhe minuciosamente as dimensões, medira cada um dos seus cantos, mobilara-a aplicadamente. Agora não sabia a que distância ficava a casa de banho da sala de estar, a sala de estar da entrada, a entrada da arrecadação. Sentia-me puxada ora para um lado, ora para outro, como em sabia-se lá que jogo, e tomou-me um sentimento de vertigem.
- Mãe, cuidado - disse-me Ilaria e agarrou-me na mão. Senti-me oscilar, estava talvez prestes a cair. Abri a porta da arrecadação e indiquei-lhe a caixa das ferramentas.
- Pega no martelo - disse-lhe eu - e vem comigo.
Voltámos para trás, e Ilaria carregava orgulhosamente o martelo com as duas mãos, e dir-se-ia enfim contente com a suamãe. Também eu me senti contente. Quando chegámos à sala, disse-lhe:
- Agora ficas aqui e bates no chão, mas sem parar, sem nunca parar.
Ilaria pareceu divertidíssima.
- E pomos o signor Carrano furioso.
- Isso mesmo.
- E se ele cá vier protestar?
- Chamas-me e eu falo com ele.
A criança pôs-se no meio da sala e começou a bater com o martelo no chão, manejando-o com as duas mãos.
Agora, pensei, tenho de ir ver como está Gianni, estou a esquecer-me dele, que mãe tão estouvada."Se calhar gostamos de tudo.
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