terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O chinês.

Chamavam-me chinês. Sim, sou moreno, mas pálido, ou empalideço facilmente. Olhos papudos que não de anjo. Que se semicerram quase sempre por sono, às vezes por outras coisas. A pior fase foi no Ciclo Preparatório. Cruzava-me todos os dias no ir e vir de casa para a escola com uma pequena besta que fazia questão de me chamar "ó chinês!". Mais do que uma vez esteve a pequena besta para levar do meu amigo e protector, o Chico Pinho, que isto dos orgulhos na infância intermédia dos onze, doze anos, não leva a lado nenhum. Porém, lembro-me de, suprema humilhação, admitir a medo no recreio , em conversa, que - sei lá - teria família macaense, origem vagamente oriental, etc. À infância primeiro sobrevive-se. O resto... O Ciclo teve coisas giras. O Ciclo teve coisas muito más. O Chico era um bom moço. Percebi-o por uma vez quando, ao brincar em sua casa, virei toda uma prateleira de bibelôs que eram o ai-jesus da sua mãe. Ela ouviu, veio averiguar e o Chico rapidamente: " Ó mãe, fui eu, escapou-me a bola!". No mundo das crianças generosidade assim é rara. O Chico tinha e tem uma voz suave, educada, pouco frequente. Foi o primeiro portista que eu conheci, quando ser portista ainda não era fácil. Espero que esteja bem. No Liceu foi tudo diferente, no Liceu de Ovar eu fui feliz. E não "chinês". Porém, nós somos toda a nossa história. Embora muitos anos tenham passado, e as calosidades tenham aparecido e crescido nos lugares mais insuspeitos, a prova dos noves é esta: que me chamem "chinês" e que eu me ria e responda com a recíproca! Hoje por hoje, nada mais posso pedir.

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