sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Eu disse 167 poetas?

Continuemos então.



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TIAGO ARAÚJO (1973-)

Um diplomata que diplomaticamente vai dizendo como as coisas não nos estão a correr bem neste novo século. Quando ele diz ao Expresso que para ele "Joy Division foi mais importante do que Fernando Pessoa" terá em atenção ter-se Ian Curtis suicidado quando o poeta tinha apenas sete anos de idade?


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a manhã ainda pode ser salva se o tempo
mudar ou o café forte quebrar o vidro entre o som
e o sentido destas frases que recito em jejum
de um jornal atrasado. dormi mais do que o habitual,
entre papéis e o som distante do telefone,
um despertador absorvido pelo sonho. ao acordar não
consegui ler nas folhas do chá de ontem, despejado frio
pela banca da cozinha, o que farei com os restos de liberdade
que me sobraram do dia anterior.
na infância ensinaram-me como é perigoso
acordar um sonâmbulo, lição que tenho
aplicado de forma exemplar em relação a mim próprio.
o equilíbrio entre os dias e as noites foi-se alterando
de modo progressivo. ouço ao longe,
pela janela aberta, os sons do
carnaval de notting hill, um sinal de que o
verão terminou. queimo os cravos da mão esquerda, a mão
cega que não tem recebido todo o prazer ou o
reconhecimento que merece. chove.
e é tudo, descrição sem análise, na luz filtrada
de um dia em que se morre mais lentamente que nos anteriores.
daqui a pouco sairemos para as ruas de comércio, cais
onde se vão saudar paquetes
que já partiram, nas tardes de sábado, para nos perdermos
entre o ruído e o excesso de informação que
caracterizam o século vinte e um, sem
que ninguém repare que saí à rua sem o desejo vestido.
a cidade deixou de ser um mapa e, passado um ano, leio o nome das ruas
como quem incendeia os barcos à chegada a terra
para não ter forma de regressar a casa.



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SÓNIA BAPTISTA (1973-)

Uma performer feita no Fórum Dança. Sounds familiar. E, porém, o texto sobrevive por si. Vejam abaixo.


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Primeiro, ler.
Quando me sinto, sento, no acto da leitura é-me
demasiado presente, evidente, a posição da minha
cabeça, equilibrada no meu pescoço num compromisso
de ligeiro tombo que não é murcho mas abnegado.
E arrumo-me.

Estão tensos os ombros? Será que me esqueci de
manter as costas direitas? As minhas demasiado
direitas costas direitas?
E arrumo-me.



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RITA TABORDA DUARTE (1973-)

Escreve para crianças e isso preocupa-me. Calouste Gulbenkian, doutoramentos, etc. Mas o poema abaixo reconcilia-me.


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COMO QUEM DIZ


Passou o verão é outono já     a estação híbrida
na verdade    uma estação meia indecisa entre
o tempo que se apaga e a gravidade
de uma tristeza caíndo com a calma
das folhas, não das aves:

    os pássaros quando morrem caiem no céu

não atravessam o ar assim de encontro ao solo,
só uma pena    ou outra as acompanha, 
às folhas,
na dolência da queda.
Desvoo lento.

É outono e vale tudo agora, os últimos brilhos
largararam já os ramos e adiámos o desejo o coração
para outros séculos outras estações.
O outono pousa na paisagem, macilento.
Tudo envolve na mesma poalha baça levemente dourada.
É outono agora e nada nos soa mal
nada parece mal
sequer esta indiferença morna com que dizes querida
devagar como quem diz cabra



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MARGARIDA VALE DE GATO (1973-)

Sobretudo traduz. Confessiva, interessante. Mais? Que ultimamente saia na Douda Correria vale.


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DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES


Para aqueles que insistem em diluir
isto que escrevo aquilo que eu vivo
é mesmo assim, embora aluda aqui
a requintes que com rigor esquivo.

À língua deito lume, o que invoco
te chama e chama além de ti, mas versos
são uma disciplina que macera
o corpo e exaspera quanto toco.

Fazer poesia é árido cilício,
mesmo que ateie o sangue, apenas pus
se extrai, nem nunca pela escrita

um sólido balança, ou se levita.
Então sobre o poema, o artifício,
a borra baça, a mim a extrema luz.



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DANIEL JONAS (1973-)

Este homem não me acaba de convencer mas compreendo, muito treino no regresso à realidade pode condicionar, ele há realidades alternativas, já se sabe. Nascido no Porto foi beber Milton a Lisboa. É efectivamente uma espécie de profeta e isto está para além do nome. Estudemos portanto.


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CARRO


Tu para aí sentada
e eu para aqui sentado,
os dois para aqui sentidos
sem nada a dizer.
Levantas-te, e dizes:
dá-me a chave do
carro

(e eu pergunto-me
o que irás fazer ao
carro
e tenho um medo de mil anos)

Percebo agora que
nada foste fazer ao
carro
excepto mijar à porta
mas foi a forma como disseste:
dá-me a chave do
carro



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RUI LAGE (1975-)

Rui, nasceste na Quasi mas lá te conseguiste safar. Nem sempre saímos das flores habituais, mas aqui e ali subimos o degrau. O facto, Rui, de darmos atenção ao arraial, à verbena, à feira concorrida, não automatiza o aparecer poesia. Isso só tu. Anda, então, trabalha. O real não chega.


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CM 122


A pele dos estofos é ainda a tua,
e o calor do banco dianteiro.

Radiador vazio,
o meu coração sobreaqueceu.

Desço o vidro e ponho a cabeça de fora
a ver se o vento ma limpa
ou ma leva.

O gelo reduz no asfalto.

O cigarro que lhe atiro:
há instantes apenas acendido
pela tua mão soberana,
provinciana, emigrante.


A pele dos estofos é ainda a tua,
e o calor do banco dianteiro

e a minha alma um cinzeiro
que não posso despejar.



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MIGUEL CARDOSO (1976-)

Se este rapaz já mereceu um posfácio da Regina Guimarães, atenção! Não escreve curto e é, muitas vezes, exclamativo! Declama, interpreta! Nota-se que ele quer chegar a algum lado e tem os meios para tal.


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E A PALIDEZ DAS MANHÃS EM QUE SE PARTE


Então

é isso: de pouca vida em pouca vida
uns frascos uns relógios que brilham
e uns tubérculos secos

É isso: de pouca vida em pouca vida
uns frascos uns relógios que já não brilham
e uns tubérculos secos

e farto de saber sacudir flores estou eu.

Não sei é para que servem estes botões que piscam.

Sei outras coisas porque li eliot
e uns franceses que ele lia.
Sei que o tempo vai estar frouxo
com possibilidade de trevas.

Sei marcar o compasso porque comprei um agrafador.

O que estiver mais à mão da nua tarde.

Vi funcionários a fazê-lo e enlouquecem

como os restantes nos intervalos das horas
para expediente basta
um gramofone ao fundo
espalhar uns papéis de embrulho
como cacos de outra vida com mais fome.

Não há como

os clássicos modernos
esses armazéns de espécies
botânicas apropriadas ao turismo de ecos
e guinchos com secura de pontas
de cigarros e pobres fins de mundos e nisto
vem claro sem surpresa o verão
de novo abaixo. É dos nervos
que ficaram invernais e pouco
adianta ir para sul ir tomar o café lá fora
atiçar Oh Oh Oh

o açúcar os mortos outras especiarias granuladas
ou despirmo-nos muito milimetricamente
debaixo dos círculos de gritos das gaivotas.

Está é preciso dizê-lo devidamente inverno
para coisas destas.

E livrar-mo-nos das pálpebras
junto ao rio escuro e dizer: está na hora
sai-me mas é da frente e entretanto pinga
qualquer coisa repetidamente deve ser do tempo

e dizer sou Tirésias sai da frente
vou para ali deitar-me no divã pôr um disco
com som de chuva
enquanto espero pelos anúncios.

Não se chega de repente ao futuro
e raramente vem ao fim de semana.
Vá. Anunciem anúncios.
Desejos tenho eu.

Será uma especiaria o açúcar
pois olha como se espalha pelo chão.

*

Vêm-se as riscas dos pijamas
por dentro da pele onde chovem
os dias muito muito miudinhos.

Conta-me a história conta-me
nas gotas nas gotas ou entre as gotas.

Conta-me como acaba
aquele anúncio a baudelaires
cheios de acessórios inúteis.

Povoar o interior
Povoar o interior.

Como é que se diz.
Como é que se diz.

Isso é na teoria.

Para chocalhar as flores
como deve ser é melhor
começar pelas raízes.

Estão desalmados os meus interiores
como convém.

Para isto não há engenhocas que me valham.
Valha-me ao menos isso.

Inverno, Verão.

Espreito as meninas a segurar perfumes
os meninos de jaqueta ao relento em jipes .

Inverno, Verão.

Já não sei ver.
Parece-me que estes motores
me extraíram o forro ao corpo.

E cá vou eu por vias de extinção.

*

E assim sendo, migrar para onde?




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ANTÓNIO CARLOS CORTEZ (1976-)


Crítico e poeta, professor na conhecido Colégio Moderno. Declara-se discípulo de Gastão Cruz, o que é do maior bom gosto. Como este venera a palavra. 


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A palavra eu acredito nela
Na sua pedra rugosa na sua superfície
De astro inominável como o fogo
A palavra eu acredito na sua sombra
Na sua medida singular
Na sua circunferência exacta quando arde
Na vida com seus animais urbanos
Evolando-se os animais no verbo escuro
Acreditar no infinitivo lodo do seu jogo
E não permanecer na sua cegueira incerta
A poesia quando se rende ao real literal
Ausente da vida que a perfura
A palavra eu acredito nela e na sua luz secreta
Entre o seu fazer e o ser dita na leitura



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INÊS DIAS (1976-)

A parceira de Manuel Freitas na Averno tem poesia muito interessante e com uma temperatura diferente.


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LA COLOMBA FERITA


a António Barahona


Quando me cansar de voar ou
a ferida estiver finalmente visível,
promete-me que a faca
será afiada e silenciosa.
Que eu não a veja chegar,
como se não tivesse passado
uma vida a pressenti-la nas dobras
do lençol, mortalha de tantas noites.
E antes, dá-me de beber
entre as mãos, conta-me
de céus azuis, sem garras
e sem abismos. Espera que
o meu coração de novo pequenino
se aninhe no calor das tuas veias
e se torne apenas a memória de
um sobressalto contra a tua pele.
Por este livro, por este poema, regresso a Campolide.



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ROSALINA MARSHALL (1976-)

Traduz, vive em Londres. A sua poesia tem piada. E às vezes acerta.


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ALTAS MADRUGADAS FRIAS


os dois amantes não sabem o que é ter família
param num café qualquer
capuletos escondem-se atrás das árvores
um dia as árvores morrerão também
e a noite furiosa
em passos largos
tomará a avenida da república
e na passadeira
esperaremos que tudo passe



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PATRÍCIA BALTAZAR (1977-)

Finalmente uma mulher do Barreiro. Paulo José Miranda escreveu sobre ela uma página muito bonita no "Hoje Macau". Era o ano de 2016 e o Governo de Macau, ao lado, promete arrefecer o mercado da habitação.


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IX


Pára para tempo. Não gosta de nada. Nada gosta dela. Ela tem os braços caídos, baba na saia. Não queria aquele fio de cabelo. Não era aquele. Ela tem raiva no sítio do açúcar. Ela enganou-se e enganou um caminho.

Uma vez dançou. Mas foi só uma vez. Logo a seguir rezou trinta avé marias mesmo sem saber o que eram. Disse ao mundo que levantava voo e depois caiu e teve muita vergonha. Ela é só um colibri. Ela queria dizer que havia política e depois rendeu-se à evidência de um santo já podre. Uma coisa supra.

Ela cravou os olhos numa ponte e disse: um dia salto. E não saltou. Não teve tempo. Uma vez teve a barriga cheia de flores. Hoje tem os olhos azuis. Carne. Ela chorou tanto que a amiga a levou ao colo. Nunca mais chorou. Cicatriz. Ela reiterando que era ela, que era ela e ainda não sabe quem é. Ela vestiu um vestido preto, mas o homem ainda falava. Fez luto na mesma, sem saber de quê. E afinal era dela.

Fugiu do casamento e atropelou um bêbado. Destrambelhada. Grita tanto todos os dias que os vizinhos invocam mortos para lhe arrancarem o cabelo. Comprimidos.

Ela teve tanto medo um dia que o medo fugiu dela. Raposa. Lobo. Doce. Anda aos trambolhões na madrugada dos outros e deixa a cidade à guerra com o rio. Vento. Água. Pedra.

Uma vez ela quis ver que raízes tinha e apodreceu. Caiu-lhe o cabelo. Disse mãe. Disse fruta. Disse morrer-te nos braços.



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