terça-feira, 8 de março de 2016

Não Oito mas Sete de Março.

A rapariga trazia a avó à consulta. Tinha uns olhos finos e o cabelo preto apanhado num puxo, como a minha filha tem, às vezes, depois do banho. Preparava-me para auscultar a avó quando ela deixou escapar, rindo: "Acho isso muito giro, curto bué essa cena!" - e apontou para o estetoscópio. Eu parei e perguntei, para confirmar: "O quê?" "Auscultar, essa coisa de pôr nos ouvidos e ouvir! Quando era miúda brincava muito aos médicos!" E era a inocência a falar, juro! Rimo-nos os dois, portanto. Auscultei o que tinha que auscultar e depois sentei-me e perguntei: "E o que faz?" "Sou empregada de limpeza no Norteshopping!" "Então com certeza já me viu sem me ver, e eu já a vi sem a ver!", respondi. ""É capaz." "Vemo-nos no Norteshopping!", disse, no fim da consulta! "Sim, mas coma coisas saudáveis, não hamburgures ou pizzas...", disse-me ela a mim. E sorria, os olhos finos.

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"Não sei como convencer a minha tia a não lhe oferecer aquele desenho a carvão! Ela diz que é um corpo, um corpo, um corpo bonito! E quer oferecer-lho!" Falávamos de uma simpatiquíssima octagenária mais viajada, vivida e sabedora do que eu alguma vez serei, dona de uma epilepsia vascular, de um vitiligo e de um sorriso enorme e um rir em cascata, malandro. "Mas na próxima consulta não se safa!". Eu tinha feito cara de incómodo, começara a rir com a palavra "corpo", essa palavra tão complicada de dizer, deixara escapar um "enfim" e uma careta. Depois percebi que o problema estava em ser uma velha a oferecer-me, uma velha hipocoagulada e com uma hiponatremia recorrente. E se fosse uma nova mas com vitiligo e hiponatremia ou uma nova com epilepsia vascular e apenas uma ligeira cifose? E se fosse... Subitamente estatelei-me por completo no chão de tão envergonhado e lá corrigi em parte o trajecto: "Terei muito gosto em receber o desenho, o que farei com ele depois...". Do outro lado asseguravam-me: "Não tem cabeca, o desenho não tem cabeca!". E senti-me não velho mas acabado, quero eu dizer, como no fim dos meus dias.

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Uma enfermeira pouco depois de reforma-se teve uma hemorragia cereberal talâmica direita, hipertensiva. Ficou com um défice motor esquerdo discreto mas com quase anestesia do mesmo lado. Ganhei-lhe amizade ao conhecer melhor a sua história de vida, mas ela, a amizade, foi-se desvanecendo á medida que a primeira, a história de vida, não se resolvia e, pelo contrário, mais se embrulhava. Casada com "o homem da sua vida", este resolvera deixá-la por Lisboa e uma amante, há muitos anos. Portugal não tem a "Big Apple" mas tem uma alface que é a nossa capital. Apesar do enorme desgosto, nunca houve uma separacão em papel e ele vinha ao Porto frequentemente e ela lavava-lhe a roupa, passajava-lhe as meias. Trocavam umas palavras, ora amargas ora de circunstância, ele voltava a desaparecer. Num dia de maior amargura o AVC aconteceu. Como não culpá-lo a ele? Permiti a culpa, até pela antipatia que o sujeito me causava. Anos passados e o imbróglio familiar não se resolvia: "foi o homem da minha vida", "as contas bancárias estão todas no nome dele", "se o divórcio for litigioso sei lá o que ele me pode fazer", " o filho não lhe fala", "ele agora voltou para casa e o advogado diz-me que não o posso expulsar". Cada consulta era mais do mesmo e era preparada com um suspiro e despedida com uma careta e o doente a seguir já à porta a bater. Negociávamos antidepressivos e calmantes. Ontem perguntou-me, estava eu já a passar a receita de Cipralex: "Senhor Doutor, posso fazer Sky Diving?" Espantado, lembrei-me num flash de uma das razões antigas da minha simpatia: ela tinha sido Enfermeira Para-Quedista! E queria, hemiparética, voltar a saltar! "Claro!", respondi! "Mas quero documentação fotográfica!" "Ah, terá, terá!" E com olhar de desafio terminou a consulta, o olhar de desafio que eu tinha captado logo na primeira consulta e que, porém, de nada lhe terá servido perante a horrível vida, a prisão dos dias, o amor deitado ao lixo. Mas ela ia voltar a saltar! Buscando a sua única liberdade possível, e entre amigos... homens!

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