sábado, 11 de novembro de 2017

Onze Poetas.

Portanto aqui vão os primeiros onze poemas (e poetas), onze poemas "fundacionais" do Século XX. Espero que saibam bem.



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CAMILO PESSANHA (1867-1926).

A história da sua vida não é um mito. O ópio matou-o, é certo, mas entretanto... E a história da poesia portuguesa no século XX só podia começar nele. Camilo Pessanha foi venerado ardentemente pelos criadores do Orpheu que o convidaram a publicar no terceiro número da revista, o tal que não chegou às bancas. A poesia de Camilo Pessanha, coligida no volume "Clepsidra" (1920) sofre na minha cabeça das reverberações do famoso "chorai arcadas do violoncelo". Mas Pessanha é muito mais do que a música nas suas palavras. Pessanha talvez seja o maior poeta português a acontecer depois de Camões. E talvez desde Camões o primeiro a provavelmente ser relevante - retrospectivamente embora - para a poesia europeia, se é que tal coisa existe.


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INTERROGAÇÕES


Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.



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ÂNGELO DE LIMA (1872-1921)

O interesse da poesia pela loucura antecedeu em muito os surrealistas. Ângelo de Lima passou quatro anos no Conde Ferreira e depois os vinte anos finais da sua vida em Rilhafoles, hoje Hospital Miguel Bombarda. E, porém, publicou no Orpheu. É impossível fugir ao belíssimo poema que abaixo transcrevo. A interpretação psiquiátrica para o mesmo é apenas falta de imaginação de quem lê. A quem quiser saltar as suas Poesias Completas sugiro o apanhado que surge na antologia "Edoi Lelia Doura", de Herberto Helder.


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Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento.

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado.
Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria.
Pára à beira do abismo, e se demora.
E mergulha na noite escura e fria.

Um olhar de aço, que essa noite explora.
Mas a espora da dor seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora...



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TEIXEIRA DE PASCOAES (1877-1952)

Aproximei-me deste poeta através do livro "Aforismos", onde Cesariny recolhia da escrita de Pascoes os mesmos. Recomendo. E aparece aqui (também) por respeito a Cesariny. Já a boutade deste ao considerar Pascoaes superior a Pessoa é... só isso mesmo. Na antologia que Cesariny organizou para a Assírio & Alvim há muita prosa brilhante ("São Paulo", por ex.) pelo meio, talvez o melhor. Não vou por aí.


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Amo-te, e não te vejo.
Nunca te vi, amor,
Muito embora te abrace a minha dor,
Que é o fantasma ideal do meu desejo.
Só ele te conhece,
E contigo passeia 
Na solidão nocturna, que embranquece,
Quando o luar, eterna gaze, ondeia,
Ao hálito da brisa comovida;
Essa impressão nervosa 
Que faz tremer na haste a imaculada rosa
E a lágrima que tem nos seios escondida.
O meu desejo é a essência do meu ser.
É ele, ao pé de ti, fantástico, a viver,
Abafando no peito um grito de ciúme,
Trilhando brasas, respirando lume!



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RICARDO REIS (1887-?)



O heterónimo mais velho - com nascimento atribuído a 1887 - podia ser uma solução possível para o "problema Pessoa" - terá sido assim que o poeta o pensou? A procura dos "prazeres moderados" e a "administração da dor" do epicurismo? Não é minha leitura frequente nem nunca li o considerado livro maior de Saramago, o Ano da Morte de Ricardo Reis. Mas o poema que se segue é maiúsculo.


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VEM SENTAR-TE COMIGO, LÍDA, À BEIRA DO RIO.


Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
          (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
          Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
          E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,         
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
         E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
          Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
          Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
          Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
          Pagã triste e com flores no regaço.



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FERNANDO PESSOA (1888-1935)

Eu podia escrever coisas muito fixes sobre Pessoa mas terminemos assim: Pessoa foi uma espécie de Messi da poesia. E o poema abaixo podia ter sido escrito ontem.


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Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,

Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há.



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ALBERTO CAEIRO (1889-1915)

O único heterónimo a não aparecer na colectânea "Século de Ouro", ergo fora de moda. Porém Pessoa vendeu-o como o seu Mestre e "O Guardador de Rebanhos" a sua obra Maior. Food for thought. A poesia de Caeiro parece simples como as mais belas canções o são. Enfim, é tarde, Inês é morta, não consigo explicar melhor.


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É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
mas não o saudei, dizendo-lhe adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.



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ÁLVARO DE CAMPOS (1890-)

O engenheiro naval que Pessoa inventou para manifestar o seu lado mais... solar (?) tem também um lado mais soturno e negativo, eu diria melancólico. Não nativo mas "adquirido" pelo Porto, tenho especial carinho pelo poema que se segue. Podia-se a seguir ler Ruy Belo...


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DOBRADA À MODA DO PORTO



Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.



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MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO (1890-1916)


O meu conhecimento deste "irmão mais novo" de Pessoa é muito parcelar. Vou aqui corrigir a trajectória e mostrar por completo as "Sete Canções do Declínio", que terminam com um dos conjuntos de versos mais conhecidos de Sá-Carneiro.


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SETE CANÇÕES DO DECLÍNIO


1

Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto de Astro
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real livre, sem mastro.

Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada ...

2

Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
— Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida!

Desfiles, danças embora
Mal sejam uma ilusão...
Cenário de mutação
Pela minha vida fora!

Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!

O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante
O amante sem amante,
Ora amado, ora traído ...

Lançar os barcos ao Mar
De névoa, em rumo de incerto...
Pra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.

...E as minhas unhas polidas
Idéia de olhos pintados...
Meus sentidos maquilados
A tintas conhecidas ...

Mistério duma incerteza
Que nunca se há de fixar...
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza ...

Num programa de teatro
Suceda-se a minha vida
Escada de Oiro descida
Aos pinotes, quatro a quatro! ...

3

Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras
Só as cores são verdadeiras
Siga sempre o festival!

Quermesse — eia! — e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
(Defronte do carrossel,
Eu, em ternura esquecido... )

Fitas de cor, vozearia —
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs — os meus afetos
Com librés de fantasia!

Ser bom... Gostaria tanto
De o ser... Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.

— Afetos?... Divagações...
Amigo dos meus amigos...
Amizades são castigos,
Não me embaraço em prisões!

Fiz deles os meus criados,
Com muita pena decerto.
Mas quero o Salão aberto,
E os meus braços repousados.

4

As grandes Horas! — vive-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime —
Sacrifícios são novelas.

"Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto..."
— Mas não há maior desgosto
Nem há maior vilania!

E quem for Grande não venha
Dizer-me que passa fome.
Nada há que se não dome
Quando a Estrela for tamanha!

Nem receios nem temores,
Mesmo que sofra por nós
Quem nos faz bem. Esses dós
Impeçam os inferiores.

Os Grandes, partam — dominem
Sua sorte em suas mãos:
— Toldados, inúteis, vãos,
Que o seu Destino imaginem!

Nada nos pode deter;
O nosso caminho é de Astro!
Luto — embora! — o nosso rastro,
Se pra nós Oiro há de ser! ...

5

Vaga lenda facetada
A imprevisto e miragens —
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada ...

Um baile russo a mil cores.
Um Domingo de Paris —
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores.

Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram —
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram ...

Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda...
Saudade que não recorda —
Bola de tênis no ar...

Um leque que se rasgou —
Anel perdido no parque —
Lenço que acenou no embarque
De Aquela que não voltou ...

Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços à beira-mar,
Em tardes de céu azul...

Viagem circulatória
Num expresso de vagões-leitos —
Balão aceso — defeitos
De instalação provisória ...

Palace cosmopolita
De rastaquoères e cocottes —
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita ...

Confusão de music-hall,
Aplausos e brou-u-ha —
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole. . .

Pinturas a "ripolin",
Anúncios pelos telhados —
O barulho dos teclados
Das Lynotype do Matin...

Manchete de sensação
Transmitida a todo o mundo —
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revolução ...

Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo — cheio
De carimbos, lado a lado. . .

Nobre ponte citadina
De intranqüila capital —
A umidade outonal
De uma manhã de neblina ...

Uma bebida gelada —
Presentes todos os dias. . .
Champanha em taças esguias
Ou água ao sol entornada ...

Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios...
Porta falsa de mistérios —
Toda uma estante repleta:

Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida —

Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo...
— A eterna mágoa dum beijo,
Essa mesma, ela me expande ...

6

Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida ...

Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na idéia de um país de gaze e Abril,
Em duvidosa e tremulante imagem ...

Parou ali a barca — e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou... — ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo ...

...Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguescida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor-de-rosa,
As torres de platina e de saudade.

Avenidas de seda deslizando,
Praças de honra libertas sobre o mar
Jardins onde as flores fossem luar;
Lagos — carícias de âmbar flutuando ...

Os palácios de renda e escumalha.
De filigrana e cinza as catedrais —
Sobre a cidade a luz — esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais ...

Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho — solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada...

Exílio branco — a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos — seu brou-u-ha...
E na praça mais larga, em frágil cera,
Eu — a estátua "que nunca tombará"...

7

Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
— Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a Posso ir apanhar!



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IRENE LISBOA (1892-1958)

Os modernismos foram  uma explosão eminentemente masculina. Irene Lisboa é, discretamente, a excepção. A importância que lhe é dada é vária, até por não fugir ao facto de ter tido uma profissão "feminina" - foi professora, mas ter escrevido sobre e ter sido considerada "avançada" e ter chegado a ser afastada do emprego por isso mesmo dá-lhe outro relevo. A sua poesia é de uma simplicidade desarmante e esconde um equilíbrio e um desenho de escrita brilhantes.


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JEITO DE ESCREVER 


Não sei que diga. 
E a quem o dizer? 
Não sei que pense. 
Nada jamais soube. 

Nem de mim, nem dos outros. 
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas... 
Seja do que for ou do que fosse. 
Não sei que diga, não sei que pense. 

Oiço os ralos queixosos, arrastados. 
Ralos serão? 
Horas da noite. 
Noite começada ou adiantada, noite. 
Como é bonito escrever! 

Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito. 
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo. 
No tempo vago... 
Ele vago e eu sem amparo. 
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas. Mortas! 


E por mais não ter que relatar me cerro. 
Expressão antiga, epistolar: me cerro. 
Tão grato é o velho, inopinado e novo. 
Me cerro! 

Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados, 
solta a outra, de pena expectante. 
Uma que agarra, a outra que espera... 

Ó ilusão! 
E tudo acabou, acaba. 
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda? 

Silêncio. 
Nem pássaros já, noite morta. 
Me cerro. 
Ó minha derradeira composição! Do não, do nem, do nada, da ausência e 
solidão. 

Da indiferença. 
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada. 
Noite vasta e contínua, caminha, caminha. 
Alonga-te. 
A ribeira acordou. 



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ALMADA NEGREIROS (1893-1970)

A Almada devo o "Nome de Guerra", novela que muito recomendo. Pinto, desenhador, performer e tudo, foi para fora o que Pessoa era para dentro, e claro que tudo assim era mais difícil. Se Sá-Carneiro era o "irmão mais novo" este pode ficar como o "primo mais novo". Como escolher? Não conheço a poesia de Almada ao detalhe mas impunha-se (porquê? porque sim) fugir à prosa poética da "A Invenção do Dia Claro". Se Almada hoje fosse vivo não teria mãos a medir para escrever todos os "Manifestos Anti-Dantas" que estes dias escuros nos pedem. Escolhi o poema que aparece na colectânea "Século de Ouro" e não preciso de dar mais explicações.


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ACONTECEU-ME


Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como senão passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado.
e eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quasi real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço. 



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MÁRIO SAA (1893-1971)

Este grande proprietário alentejano nascido nas Caldas foi um polígrafo (como eu gosto de utilizar esta palavra!), ou seja, um home com múltiplos interesses, mas hoje só lhe sobrevive a sua poesia, editada pela INCM. Na ânsia de encontrar uma ponte entre o Orpheu e a Presença encontraram Mário Saa e pronto! Os seus poemas mais citados são as duas "Xácaras", vidé a internet. Permito-me fugir através de uma pequena preciosidade que fecha bem esta colecção de onze poetas onde começou a nossa Poesia Moderna.


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Mote

Eu tenho em casa uma mesa
que até já sei de cor,
ainda lá tenho outra mesa
mas é um pouco maior.

Glosa

Se em esta pequena mesa
comprimo os punhos d'amor
ergo um perfume de rosa
e a mesa faz-se maior.

Em tua honra e louvor
multiplico a minha escrita,
e aumenta a luz e o calor
e a mesa faz-se infinita...



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