sábado, 11 de novembro de 2017

Mais Nove Poetas.

A nossa segunda entrega de poemas começa com António Botto mas depois ocupa-se da revista Presença - o chamado segundo Modernismo - e dos primeiros nomes do Neo-Realismo e dos "Cadernos de Poesia", duas linhas de escrita e de pensamento que iriam dominar os anos quarenta.



ANTÓNIO BOTTO (1897-1959)

A história de António Botto é de todos conhecida. Já não vende o seu "O Livro das Crianças", que chegou a ser traduzido em vários países. Valeu a defesa "Aviso Por Causa da Moral" escrita por Fernando Pessoa, que o editou. As "Canções" foram a sua bandeira. Nunca o amor fora assim cantado, musicado, desenhado ou pintado. Calhava ser homossexual o amor celebrado. Morreu após ter sido atropelado (por um camião?) no Brasil onde vivia um exílio penoso.


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ANDA, VEM.


Anda, vem... por que te negas, 
Carne morena, toda perfume? 
Por que te calas, 
Por que esmoreces 
Boca vermelha, - rosa de lume! 

Se a luz do dia 
Te cobre de pejo, 
Esperemos a noite presos n'um beijo. 

Dá-me o infinito gozo 
De contigo adormecer, 
Devagarinho, sentindo 
O aroma e o calor 
Da tua carne, - meu amor! 

E ouve, mancebo alado, 
Não entristeças, não penses, 
- Sê contente, 
Porque nem todo o prazer 
Tem pecado... 

Anda, vem... dá-me o teu corpo 
Em troca dos meus desejos; 

Tenho Saudades da vida! 

Tenho sede dos teus beijos!




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EDMUNDO DE BETTENCOURT (1899-1973)

Este poeta madeirense é referência na história do Fado de Coimbra, vejam lá, mas foi figura do Segundo Modernismo - da Presença - e frequentou os cafés do Surrealismo. Na sua poesia, tardiamente coligida, sobressai uma colectânea, os "Poemas Surdos". Figura original, Cesariny e Herberto Helder deram-lhe o valor devido. No poema abaixo eu li que Lobo Antunes foi buscar mote para a escrita de todo um capítulo de um seu romance, aquela parte "ela calma e virtuosa ia mexendo a sopa!". É obra.


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ASAS


Do colo branco da paisagem
saíram, abrindo-lhe um buraco ensanguentado,
a cara dela
que era uma sereia
e que era uma pantera a rebolar no chão
aos rugidos metálicos do amor
sob a forma de nuvens muito ao longe...

Despertei-me o felino adormecido.

Depois houve, feridas, duas bocas beijadas
que sangravam imenso na cozinha
onde ela calma e virtuosa ia mexendo a sopa!

E tudo após ter-se partido
uma enorme porção de loiça,
mas como se não tivesse havido nada!



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JOSÉ GOMES FERREIRA (1900-1985)

Talvez hoje tenha caído de moda oferecer à nossa juventude para ler (em contraposição à Sophia) "As Aventuras do João Sem Medo". É pena. Contemporâneo da Presença foi, mais pela ideologia do que pela prática poética "em si", o patrono do Neo-Realismo e mais. Lembro bem um texto escrito pelo Herberto Helder a defender o José Gomes Ferreira como o exemplo do poeta-puro, do poeta-como-deve-ser. Tempos idos ou memória curta? A poesia de Gomes Ferreira, coligida sintomaticamente nos volumes "Poeta Militante" dá-se mal com a extensão, onde algum léxico e alguma ginástica de escrita parece mal solucionada. Uma antologia criteriosa feita com dedicação, se possível, seria muito bem vinda.


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XLVI


(Stockhausen. Música electrónica. Viagem espacial.)

Em cada homem
há uma viagem para um planeta longínquo.

(Para os pobres é a Terra.)



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VITORINO NEMÉSIO (1901-1978)

Se Cesariny preferia Pascoaes, Vasco  Graça Moura resolveu dizer um dia que preferia Nemésio a Pessoa. Nemésio escreveu consensualmente um dos grandes romances do séc.XX português, "Mau Tempo No Canal". Mas o que mais me espanta é realmente o seu saber fazer poesia, a um tempo lúdico e com a mais fina elaboração. Nemésio nunca facilita. E não erra. Se se aplicasse esta expressão a alguém em Portugal poder-se-ia dizer que Nemésio foi um "príncipe das letras". Já me esquecia, sim, pertenceu à Presença, mas a sua grandeza ultrapassou em tanto os seus conterrâneos que...


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O PÃO E A CULPA.


Desde que me conheço sei o pão
E o corto em companhia.
Por ele me bate o coração,
E em sua dobra quente
Grelava outrora a alegria
De mim e de muita gente.

Uma hastilha de seiva começava-o
Como um fio de luz,
E a eira rasa dava-o
Tal como a rosa de alva a cor produz.

Vinha a nós como o Reino vem na prece,
Sendo feita a vontade ao Lavrador:
Assim numa alma limpa amadurece
A semente de amor.

Era o pão. Chão de pão,
Dizia-se ‑ e era logo;
Caía o gesto à terra, a espiga balouçava,
O tempo, devagar, corria-lhe a sua mão,
E com um pouco de pinho e outro de fogo
A vida clara estava
Naquela combinação.

Hoje, que é pão ainda, e à noite nosso,
Vai-se a cortar, falta-lhe talvez polpa.
Se não parto na mesa o pão que posso
É minha a culpa.

Eu sei o pão de cada dia e trago-o:
Ontem, como amanhã, já hoje mo dão;
Mas, vago, a meio da dentada, trago-o,
E não, não é bem o mesmo, ou então não posso…

Ou pelo menos não é todo nosso
Este que levo à boca, o nosso pão.




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MIGUEL TORGA (1907-1995)

Quando comecei a ler sobre estas coisas da poesia Torga, assim dito, só o apelido do pseudónimo, era quase intocável. Até que foi decidido que afinal estávamos perante um "poeta menor". Será. Mas no que é uma construção poética bastas vezes rígida aparecem aqui e ali algumas coisas que...


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QUASE UM POEMA DE AMOR.


Há muito tempo já que não escrevo um poema 
De amor. 
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! 
A nossa natureza 
Lusitana 
Tem essa humana 
Graça 
Feiticeira 
De tornar de cristal 
A mais sentimental 
E baça 
Bebedeira. 

Mas ou seja que vou envelhecendo 
E ninguém me deseje apaixonado, 
Ou que a antiga paixão 
Me mantenha calado 
O coração 
Num íntimo pudor, 
— Há muito tempo já que não escrevo um poema 
De amor.




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ANTÓNIO PEDRO (1909-1966)


Um agitador num país que gosta pouco disso, pintor, poeta e inventor do Teatro Experimental do Porto, não se percebe porque aquela já não tão nova assim sala que há ali para os lados da ponte da Arrábida não tem o seu nome. Também na poesia a sua costela surrealista não ficou sem crítica, idem as reacções ao seu escrito "Apenas Uma Narrativa". Mas o poema longo que segue abaixo não merece qualquer reparo. Fala de São Lourenço da Montaria - de onde se sobe para a Senhora do Minho - e muito apropriadamente ou não da sua querida Serra de Arga. Idem por lógica faleceu no Moledo, onde escreveu ter escrito este poema.


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PROTOPOEMA DA SERRA D'ARGA.


Sonhei ou bem alguém me contou
Que um dia
Em San Lourenço da Montaria
Uma rã pediu a Deus para ser grande como um boi
A rã foi
Deus é que rebentou
E ficaram pedras e pedras nos montes à conta da fábula
Ficou aquele ar de coisa sossegada nas ruínas sensíveis
Ficou o desejo que se pega de deixar os dedos pelas arestas das fragas
Ficou a respiração ligeira do alívio do peso de cima
Ficou um admirável vazio azul para crescerem castanheiros
E ficou a capela como um inútil côncavo de virgem
Para dançar à roda o estrapassado e o vira
Na volta do San João d’Arga

Não sei se é bem assim em San Lourenço da Montaria
Sei que isto é mesmo assim em San Lourenço da Montaria
O resto não tem importância
O resto é que tem importância em San Lourenço da Montaria
O resto é a Deolinda
Dança os amores que não teve
Tem o fôlego do hálito alheio que lhe faltou a amolecer a carne
Seca como a da penedia

O resto é o verde que sangra nos beiços grossos de apetecerem ortigas
O resto são os machos as fêmeas e a paisagem é claro
Como não podia deixar de ser
As raízes das árvores à procura de merda na terra ressequida
Os bichos à procura dos bichos para fazerem mais bichos
Ou para comerem outros bichos
Os tira-olhos as moscas as ovelhas de não pintar
E o milho nos intervalos

Todas estas informações são muito mais poema do que parecem
Porque a poesia não está naquilo que se diz
Mas naquilo que fica depois de se dizer
Ora a poesia da Serra d’Arga não tem nada com as palavras
Nem com os montes nem com o lirismo fácil
De toda a poesia que por lá há

A poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesia
Que fica depois da gente lá ter ido
Ver dançar a Deolinda
Depois da gente lá ter caçado rãs no rio
Depois da gente ter sacudido as varejeiras dos mendigos
Que também foram à romaria

As varejeiras põem as larvas nos buracos da pele dos mendigos
E da fermentação
Nascem odores azedos padre-nossos e membros mutilados

É assim na Serra d’Arga
Quando canta Deolinda
E vem gente de longe só para a ouvir cantar

Nesses dias
as larvas vêem-se menos
Pois o trabalho que têm é andar por debaixo das peles
A prepararem-se para voar

Quanto aos mendigos é diferente
A sua maneira de aparecer
Uns nascem já mendigos com aleijões e com as rezas sabidas
Do ventre mendigo materno
Outros é quando chupam o seio sujo das mães
Que apanham aquela voz rouca e as feridas
Outros então é em consequência das moscas e das chagas
Que vão à mendicidade

Não mo contou a Deolinda
Que só conta de amores
E só dança de cores
E só fala de flores
A Deolinda

Mas sabe-se na serra que há uma tribo especial de mendigos
Que para os criar bem
Lhes põem desde pequenos os pés na lama dos pauis
Regando-os com o esterco dos outros

Enquanto ali estão a criar as membranas que valem a pena
Vão os mais velhos ensinando-lhes as orações do agradecimento
Eles aprendem
Ao saberem tudo
Nasce de propósito um enxame de moscas para cada um

Todas as moscas que há no Minho
Se geraram nos mendigos ou para eles
E é por isso que têm as patinhas frias e peganhosas
Quando pousam em nós
E é por isso que aquele zumbido de vai-vem
Das moscas da Serra d’Arga
Ainda lembra a mastigação de lamúrias pelas alminhas do Purgatório
Em San Lourenço da Montaria

Este poema não tem nada que ver com os outros poemas
Nem eu quero tirar conclusões com os poetas nos artigos de fundo
Nem eu quero dizer que sofri muito ou gozei
Ou simplesmente achei uma maçada
Ou sim mas não talvez quem dera
Viva Deus-Nosso-Senhor

Este poema é como as moscas e a Deolinda
De San Lourenço da Montaria
E nem sequer lá foi escrito

Foi escrito conscienciosamente na minha secretária
Antes de eu o passar à máquina
Etc. que não tenho tempo para mais explicações

É que eu estava a falar dos mendigos e das moscas
E não disse
Contagiado pelo ar fino de San Lourenço da Montaria
Que tudo é assim em todos os dias do ano
Mas aos sábados e nos dias de romaria
Os mendigos e as moscas deles repartem-se melhor
São sempre mais
E creio de propósito
Ser na sexta-feira à noite
Que as mendigas parem aquela quantidade de mendigozinhos
Com que se apresentam sempre no dia da caridade

Elas parem-nos pelo corpo todo
Pois a carne
De tão amolecida pelos vermes
Não tem exigências especiais
E porque assim acontece
Todos os meninos nascidos deste modo têm aquele ar de coisa mole
Que nunca foi apertada

Os mendigos fazem parte de todas as paisagens verdadeiras
Em San Lourenço da Montaria
Além deles há a bosta dos bois
Os padres
O ar que é lindo
Os pássaros que comem as formigas
Algumas casas às vezes
Os homens e as mulheres

Por isso tudo ali parece ter sido feito de propósito
Exactamente de propósito
Exactamente para estar ali
E é por isso que se tiram as fotografias

Por isso tudo ali é naturalmente
Duma grande crueldade natural
Os meninos apertam os olhos das trutas
Que vêm da água do rio
Para elas estrebucharem com as dores e mostrarem que ainda estão vivas
Os homens beliscam o cu das mulheres para que elas se doam
E percebam assim que lhes agradam
Os animais comem-se uns aos outros
As pessoas comem muito devagar os animais e o pão
E as árvores essas
Sorvem monstruosamente pelas raízes tudo o que podem apanhar

Assim acaba este poema da Serra d’Arga
Onde ontem vi rachar uma árvore e me deu um certo gozo aquilo
Parecia a queda dum regímen
Tudo muito assim mesmo lá em cima
E cá em baixo dois suados à machadada

Ao cair o barulho parecia o duma coisa muito dolorosa
Mas no buraco do sítio da árvore
Na mata de pinheiral
O azul do céu emoldurado ainda era mais bonito
Em San Lourenço da Montaria.



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JOSÉ BLANC DE PORTUGAL (1914-2001)

O único director das três séries dos "Cadernos de Poesia" foi metereologista, crítico musical e homem de uma cultura vastíssima, que transparece na sua - esquecida - poesia, cuja primeira colectânea, "Parva Naturalia" só viu a luz em 1960.


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ELEGÍACA


Os afogados do verão
Os que morrem no outono
Os que o inverno gelou
Quem não pôde aguentar mais primaveras
Mais os sinistrados de todo o ano
Ganharam bem do tempo a morte.
Tu que continuas a pisar
Cada dia esse caminho
Cada dia igual e sempre diferente
À cabeça a encardida malga
Da sopa dos pobres que é dada
Não já por caridade nem rotina
Mas como ritmo ordenado
Fado dos tempos das estações da vida,
Tens bem mais alta sorte heróica:
Pagas maior vida
Vives cada dia a morte
Sem que sequer te importe
Mais que a aresta viva
De cada pedra a evitar
No sabido caminho
Igual ontem, hoje e amanhã.
Assim constróis o lixo suburbano
Donde subirão um dia
O que hão-de ser «os bairros novos
Da progressiva cidade»
Nos discursos municipais.

Os mortos dos jornais
E tu que nunca lá irás parar
Abrem as covas –
Para vós elas se fazem. –

Quem serão os vivos?



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RUY CINATTI (1915-1986)

O poeta que, mendigo, andou pelas ruas de Lisboa a distribuir panfletos sobre Timor no final dos anos setenta é hoje reconhecido como um dos Grandes do "Século de Ouro", em grande parte pelo trabalho de recolha e divulgação de Joaquim Manuel Magalhães. Tem também um dos títulos mais bonitos que conheço para livro de poesia: "O Livro do Nómada Meu Amigo".


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ETERNO FEMININO


Faz-me lembrar 
o meu romance
do Rio Grande.

Eu era vaqueiro.
Suava cavalos,
comia bom bife.

Ela dormitava
lá no Rio Grande.

Um dia, ela disse:
Traz o meu cavalo,
vem daí comigo.

Fui.



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MÁRIO DIONÍSIO (1916-1993)

Das figuras mais influentes no Neo-Realismo, recuso-me a voltar a ler "O Dia Cinzento e Outros Contos", não vá a releitura destruir a impressão que me foi deixada na adolescência. "A Paleta e o Mundo" será uma referência na escrita sobre pintura. O poema abaixo é da colectânea tardia "Terceira Idade"e dialoga sem nomear com Fernando Pessoa.


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(quase uma dedicatória)

Ó lúcido fantasma a que fugi
toda uma vida
por não querer aceitar vinda de ti
a voz que dos destroços fabricaste

Ó inventor de teias   Gozador
do próprio esquartejamento
Ó sublime corrupto corruptor
indígena do caos e da medida

este invocar-te agora tão rendidamente
é ler-me em lutas que levou o vento
ou dar enfim a mão à palmatória?

Meu inimigo oculto na memória
que contra mim mesmo protegi
Meu secreto prodígio que fechaste
os caminhos todos só porque os abrias
que fascínio é este e que tormento?

Por estranhas línguas procurei as vias
de evitar-te    Desmontei teus truques    Reduzi as
tuas seduções a ínvias construções de humor doente
E vê onde vim dar humílimo e converso

Nem tua sombra sou    Mas como tu deixei
por mil espelhos partidos a alma repartida
e no rasto do que em ti mais recusei
incógnito aqui fico eterno residente 
do disperso.






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