sábado, 30 de julho de 2016

Pier Paolo Pasolini - A Um Papa.


A UM PAPA



Poucos dias antes de morreres, a morte pousou os olhos em alguém da tua idade:

aos vinte anos tu estudavas, ele era pedreiro, tu, nobre, rico, ele um rapazote plebeu:

mas os mesmos dias douraram sobre vós a velha Roma, voltando a dar-lhe a sua juventude.

Vi os seus despojos, pobre Zucchetto. Andava de noite, bêbado, à volta dos Mercados,

e um eléctrico que vinha de San Paolo atropelou-o e arrastou-o por uns metros de carris no meio dos plátanos:

durante umas horas ficou ali, sob o rodado: poucas pessoas se juntaram em redor, olhando-o,

em silêncio: já era tarde, havia pouca gente. Um dos homens que existem para que tu existas,

um velho polícia, desbocado como todos os patifes, gritava aos que se aproximavam mais: «Larguem-lhe os colhões!»

Depois veio uma ambulância buscá-lo: as pessoas desapareceram, só ficaram uns grupos aqui e acolá,

e, mais à frente, a dona de um cabaré, que o conhecia, disse a um recém-chegado

que Zucchetto tinha ficado debaixo de um eléctrico, que estava morto. Poucos dias depois, morrias tu: Zucchetto era um

dos do teu grande rebanho romano e humano, um pobre bêbado, sem família nem leito,

que andava de noite, vivendo ao deus-dará. Tu ignoravas: como ignoravas

outros milhares e milhares de cristos como ele. Talvez seja cruel ao perguntar por que razão

a gente como Zucchetto é indigna do teu amor. Há lugares infames, onde mães e filhos

vivem na poeira antiga, na lama de outras eras. Não muito longe de onde tu viveste,

à vista da bela cúpula de San Pietro, fica um desses lugares, o Gelsomino...

Um monte cortado ao meio por uma pedreira, e no sopé, entre um charco e uma fieira de prédios novos,

um montão de tugúrios miseráveis, não casas mas pocilgas. Bastava um gesto teu, uma palavra,

para esses teus filhos terem uma casa: nunca fizeste um gesto, nunca disseste uma palavra.

Ninguém te pedia que perdoasses Markx! Uma vaga imensa que irrompe sobre milénios de vida

te separava dele, da sua religião: mas não se fala, na tua religião, de piedade?

Milhares de homens sob o teu pontificado, diante dos teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.

Tu sabias que pecar não é fazer o mal: não fazer o bem, isso sim, é que é pecar.

Quanto bem podias tu ter feito! E não fizeste: não houve quem mais pecasse do que tu.







Pier Paolo Pasolini, in La Religione Del Mio Tempo, ed 1961

(trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo para POEMAS - Pier Paolo Pasolini, ed Assírio & Alvim, 2005)

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