sexta-feira, 19 de junho de 2020

Um vírus mesmo nada bom.

Junho dezanove e ainda não voltei a abraçar a minha mãe.

Afinal Portugal é um país o suficientemente grande para acolher um vírus em tempos diferentes, primeiro no norte e centro e agora em Lisboa e no sul.

A economia não pode parar, abriu o Colombo e a Praia da Rocha, vêm aí os charters, desta vez não de chineses mas de quem quiser vir. Em alternativa os portugueses. Pela primeira vez em décadas ouvi publicidade do Algarve na rádio portuguesa.  

E por essa Europa fora não nos querem. E mentimos como outros mentiram, a culpa nos demasiado testes. Augusto Santos Silva promete retaliar.

António Costa, consensualmente considerado uma má pessoa (é só fazer o teste), revelou-se em todo o seu esplendor ao "oferecer" a "Final Eight" da Liga dos Campeões aos profissionais do SNS. Vai sim oferecer os novos infectados que resultarão do evento. Toni, um abraço!
Virá não uma, virão cem vacinas. Vai o António Costa escolher a correcta, igual aquelas máscaras cirúrgicas que desfaziam nas mãos que recebemos em Abril. É possível que a vacina tenha o patrocínio da Super Bock.

Os sinais estão aí:  a saída de Centeno, os espectáculos no Campo (demasiado) Pequeno, as filas para a Primark: isto não vai acabar bem.

Os doentes no meu Hospital continuam ainda a não poder receber sequer uma miserável visita. Não há pior desdita do que afrontar a doença sozinho. Mas esta sociedade em que vivemos é uma sociedade de apenas sim ou não. 

A minha filha voltou para Berlim. Onde ela mora, Neukölln, há uns quantos prédios em quarentena.

Junho dezanove e ainda não voltei a abraçar a minha mãe.

sábado, 13 de junho de 2020

Do Racismo.

Às vezes o meu pai levava-me ao futebol. Ficávamos cá para trás, para evitar as confusões que aconteciam no campo da Ovarense nas primeiras filas, sobretudo quando defrontava o Valecambrense ou o Esmoriz. A Ovarense tinha vários jogadores negros, lembro-me do nome de dois: o Humaitá e o Pepe. Que quando marcavam tinham nome, quando falhavam eram apenas "pretos". 

Em 1955 no sul dos Estados Unidos Rosa Parks recusou-se a ceder o seu lugar num autocarro a um branco. Não foi no século XVI, foi há precisamente 65 anos. Na época de 54/55 jogou pela primeira vez no Benfica Mário Coluna, o outro grande jogador negro português, reconhecido internacionalmente como médio de excepção e cá como o "Monstro Sagrado". Foi o patrão do balneário do Benfica durante mais de uma década. Ao contrário de Eusébio, voltou para Moçambique e morreu Moçambicano a tentar fazer alguma coisa pelo desporto do seu país. Se não fosse pelo futebol não sei se o português branco normal e corrente de então não seria mais racista. Hoje temos Eusébio no Panteão, portanto, e aproveitando Rui Rio, "não há racismo em Portugal".

Das minhas memórias televisivas do antes do 25 de Abril, para além das mensagens de "um Ano Novo cheio de Propriedades" dos soldadinhos no Ultramar, lembro-me ainda de publicidade e chamar colonos para o Tete, em Moçambique. Nascido eu em 64, vejam o anacronismo do apelo. 

O colonialismo português tem a fama de ter sido "suave". Não terá sido assim porque era um país pobre a fazê-lo e portanto não dava para mais?

Apelidar Vasco da Gama ou o Padre António Vieira de racistas e colonialistas é desconhecer a história e falhar os séculos. Destruir estátuas de Colombo, por pouca simpatia que eu tenha pela figura, não serve de nada. A descoberta da América foi o encontro sangrento não de dois mas de três continentes. A Europa descobriu a América e com ela se relacionou como de costume, conquistando e subjugando. Nestes lavores matava-se. Nada de novo ou de anormal para aqueles tempos. As doenças europeias por outro mataram milhões e milhões e milhões de índios americanos, sem qualquer imunidade para as mesmas. Com o passar do tempo passaram a ser uma minoria na sua própria terra. Para trabalhar o continente recém-conquistado era necessário mão-de-obra não barata mas sim gratuita e obrigada. A colonização da América não inventou a escravatura, esta era fundamental nas cidades gregas, no império romano, nos vários impérios muçulmanos. Mas nunca aconteceu numa tão grande escala. 

A descolonização apanhou-me no Ciclo Preparatório, tinha eu 11, 12 anos. Recebi na minha turma variados filhos de retornados, eles retornados também. Tive-os como amigos ou conhecidos, dezenas. Vou contar casos isolados, minoritários, gotas num oceano, mas conversas que lembro. Dum fiz-me amigo para a vida, hoje também médico. Para ele os negros eram os "blacks". E aqui terminava a utopia da sociedade multicultural moçambicana. Havia "eles", os "blacks", e nós. Outra amiga minha descrevia já no liceu com eterna saudade os seus passeios de criança pelas águas da baía da então Lourenço Marques, da mão da sua criada (negra, aposto). No começo da faculdade uma colega minha de ano falava dos negros como "não sei, diferentes". E afastava o corpo, encolhendo-se. Isto foi em 82, ainda o apartheid não tinha caído. Falo de conversas que me impressionaram, conversas contadas, poucas, um detalhe num mundo de sofrimento que foi para essa gente toda o procurar refúgio num Portugal que sem entusiasmo os recebeu.

Um dos médicos que me formou e para quem tenho uma dívida de gratidão infinda trabalhou anos com a Faculdade de Medicina de Maputo. A sua opinião era sempre a mesma, embora eu não lha tivesse pedido: "a verdade é que eles não se sabem governar". Como se um incapacidade definitiva se abatesse sobre uma cor de gente. Como se um país cujas fronteiras foram feitas por outros, com várias etnias, línguas, riqueza bastante e pobreza extrema e vítima de uma longa guerra civil alimentada do exterior fosse fácil de governar.

Rui Rio é seis anos mais velho do que eu. Com certeza quando mais novo ainda assistiu a conversas ao jantar entre pessoal mais velho a decidir se era racista ou não e a frase-chave era sempre esta: "tudo isso está muito bem mas tu aceitavas um negro como genro?". O silêncio na assembleia era a resposta.

A cor. Uma característica à qual não se pode fugir. Eu sou branco mas pouco, moreno, bem mais após uns não muitos dias de sol. E tenho os dedos curtos e achatados, os braços finos e as pernas grossas. Os caninos mal implantados que sobressaem se me rio. As orelhas conformadas e os olhos finos. Já aqui disse que de pequeno chamavam-me de "chinês". 
O meu coração, acredito, será como  o de todos, de um vermelho-escuro.

Os portugueses são hoje menos racistas do que ontem. Mas o melhor é mantermo-nos vigilantes.

 


quinta-feira, 11 de junho de 2020

Ainda o 2020 não vai a meio.

Afinal não tenho a certeza absoluta de que o ano de 2020 seja apenas o ano do Covid-19.

Desde Watergate que os Estados Unidos não vivem uma crise tão séria. Elegeram um presidente que não reconhece outra lei que não a da sua vontade. Um presidente que fagocitou um partido que, desde Reagan, tem vindo a tornar-se progressivamente mais conservador e mais polarizado em apenas servir-se e servir "os seus", ou seja, paradoxalmente, os brancos mais ricos e os brancos mais pobres. Trump é culpado de não saber conduzir uma crise grave como a da pandemia vírica. Por outro lado apareceu-lhe agora pela frente a morte de George Floyd, a enésima prova da existência de um racismo larvar mas presente na sociedade americana. Trump é racista e ainda mais o é por uma grande razão, assim de simples: Barack Obama. O homem que o humilhou num discurso de circunstância para jornalistas e que, por este discurso, se calhar motivou a decisão de Trump se candidatar. Por outro lado Trump  entrou numa guerra comercial e, se calhar, não só comercial com a China. Os Estados Unidos ainda têm a mão mais forte neste jogo de poker político-económico. Mas Trump é um jogador fraco, inconstante, não de confiar. Abandonou o Afeganistão e a Síria à sua sorte, já esteve em vias de o fazer com a Coreia do Sul, nunca será o aliado mais leal de Taiwan ou de Hongkong. A China tem aqui uma oportunidade dourada. Haverá eleições para a Casa Branca no fim do ano. O candidato democrata, Joe Biden, só é forte porque Donald Trump é fraco. Mas será Donald Trump mesmo fraco? Os republicanos não irão tentar manipular o resultado eleitoral? Lembro que Hillary Clinton teve mais votos do que Donald Trump, Al Gore mais votos do que George W Bush e só não foi Presidente devido a uma enorme e confusa confusão com os votos na Florida que lhe foi estranhamente desfavorável. A democracia americana é surpreendentemente frágil e tem hoje ao leme um menino rico pateta cujo herói confesso é... Vladimir Putin. Que vai voltar a ganhar umas eleições se os brancos pobres continuarem a votar nele, apesar da economia mas porque George Floyd não lhes diz nada.

A política é só uma, e as acções dos políticos são no geral previsíveis. A China vive uma encruzilhada comparável à dos anos oitenta, quando começou a sua rápida evolução para a "economia de mercado socialista" e aconteceu Tianamen. A China tem um poder económico que já se compara ao americano. O seu líder já é, frequentemente, considerado "o homem mais poderoso do mundo" naquelas listas anuais do Economist ou da Forbes. A sua liderança centralizada dá-lhe uma vantagem de decisão sobre os Estados Unidos e a Europa muito assinalável. A sua liderança centralizada centralizou-se ainda mais com a chegada ao poder de Xi Jinping em 2012. Este foi declarado "Presidente Vitalício da China" em 2018, como só antes Mao Ze Dong, e escreveu o livro "A Governança da China" que pretende ser o sucessor do famoso "Livro Vermelho" do mesmo Mao Ze Dong. Os antecessores de Xi Jinping "duraram" tacitamente dez anos. Xi Jinping não vai sair de cena em 2022. Sabe que a China tem uma oportunidade única para passar a dominar um mundo cada vez menos multipolar: tem pela frente um presidente americano que é um tonto. A crise do Covid-19 vai  passar. Se não passar e a economia tremer, Hongkong, Taiwan ou o conflito do Mar da China do Sul servirão sempre para distrair o povo e fermentar o patriotismo, como Tatcher fez com as Falkland. A excepcionalidade de Hongkong parece que já é uma coisa do passado.

O Brasil está a viver uma crise ainda maior do que a dos tempos de Collor de Mello. O Brasil é um gigante com dois pés de barro: a violência e a corrupção. Quando elegeu Jair Messias Bolsonaro para Presidente o povo brasileiro pensou que havia alguma hipótese do ex-militar e outsider da política resolver ou pelo menos diminuir quer a corrupção quer a violência. Foram precisos poucos meses para se perceber que não. E foi aí que apareceu a pandemia. Escasseiam as palavras na língua portuguesa para descrever o comportamento de Bolsonaro perante o problema Covid-19. E, por outro lado, há investigações há volta dos negócios dos seus quatro filhos feitas pelas instituições da justiça brasileira que, apesar de tudo, ainda funcionam. Bolsonaro apela directamente aos militares para que intervenham, o que poderá acontecer, não sabemos se para apoiar ou destituir Bolsonaro. O Brasil está neste momento "oficialmente" com mais de meio milhão de infectados por Coid-19 e sem rumo. Teme-se o pior, embora com tudo o que já aconteceu ao Brasil, definir o que será o "pior" talvez seja difícil. 

A Espanha tem o governo mais progressista da União Europeia, marcado pela incorporação do Unidas Podemos no seu elenco, sendo Pablo Iglesias "vicepresidente segundo". Este chegar da extrema esquerda - que é o que Unidas Podemos é - ao poder num país "esticado" pela pulsão independentista catalã e o subir da extrema-direita da Vox, que "obriga" o Partido Popular a não abrir mão do discurso duro e espanholista, ameaça dividir ainda mais um país que dividido se calhar sempre foi. Pode que o controlo tardio mas acertado da pandemia ajude, mas os discursos incendiários no parlamento de Abascal, Casado e Iglesias prometem problemas graves, com umas eleições autonómicas na Catalunha ainda este ano como rastilho. Onde a solução para Espanha?