Morreu-me uma Amiga. Nunca a conheci.
Para quem tem menos de cinquenta anos de idade não se consegue explicar quem foi no início Clara Pinto Correia (CPC). O primeiro livro que eu li dela, uma noveleta, chamava-se "Agrião!" e saiu em 84. Estava a acabar o Bloco Central e ia acontecer o cavaquismo. Ia começar a acontecer um mundo novo. Onde havia (algum) dinheiro. "Agrião!" era de uma frescura inesperada, despreocupada, ao mesmo tempo rico e simples, ágil, bem disposto. Prometia uma espécie de mundo (também) novo mas divertido, gauche mas já sem o punho erguido como obrigação. Ainda aluna de Biologia Clara publicara a sua primeira obrinha "Anda uma mãe a criar filhas para isto.". Que título! E já era jornalista no "O Jornal"! A Clara tornou-se uma visita de muitas casas e cabeças, incluindo a minha, um rasgo de cara como não havia outro, olhos escuros brilhantes como só voltei a encontrar um par de anos depois. E depois publicou "Um Esquema". Li este conto muitas vezes. Porque eu, também, viria a viver um "esquema", pouco tempo depois, e esse meu "esquema" acabou. Procurei vezes sem fim nas páginas escritas pela CPC a explicação para o "fim". Não estava lá.
Esta segunda metade dos anos oitenta acontecia sobretudo em Lisboa e o seu cronista era Eduardo Prado Coelho. Lembro-me bem de uma crónica onde ele relata o seu estar parado numa fila de carros a voltar do Algarve - ainda não havia a A2. Estava parado e aborrecido até que ouviu alguém a rir, um rir escancarado e quente. Era a Clara. Parados eles também num carro, ela e o então marido António Mega Ferreira, o casal maravilha da intelectualidade lisboeta, estavam pura e simplesmente a cagar-se para a demora e a desfrutar da companhia um do outro e de existir um mundo e nele viverem radiosamente.
O casamento acima depois acabou. CPC publicara o seu primeiro romance, "Adeus Princesa" ainda em 85 e foi um best-seller arrasador. As críticas foram supinas. Em 86 escreveu em parceria com Mário de Carvalho "E se tivesse a bondade de me dizer porquê?", uma entronização brincalhona. A partir daqui a sua escrita começou a descer em qualidade, que não em quantidade, pois continuou a publicar incessantemente. Em 89 "fugiu" para a América para prosseguir a sua carreira académica, voltou para se doutorar no ICBAS em 92, continuando depois em pingue pongue entre a America e Portugal.
O seu livro "The Ovary of Eve - Egg & Sperm & Preformation" foi publicado em 1997 pela University of Chicago Press com abundante repercussão dentro e fora das academias.
O tempo ia passando, CPC era uma presença muito frequente nos jornais, na rádio, na televisão. Adivinhava-se, como na escrita, uma rampa deslizante que depois se concretizou.
Em 2003 foi despedida da revista "Visão" por plágio. Em 2010 aconteceu a triste exposição de fotografias da sua cara em Cascais ilustrando o orgasmo feminino - seu.
Sózinha e ao que parece a viver com parcos recursos em Estremoz, foi encontrada morta hoje.
Talvez à Clara se tenham esgotado os truques. Ou se tenha encontrado sem mais nenhum esquema pelo qual quisesse permanecer. Ou talvez ainda tenha fumado apenas mais um cigarro.
Clara Pinto Correia foi, sem o saber, minha Amiga. Nunca nos conhecemos. Mesmo. O que eu li como "um esquema" é hoje a vida boa que tenho, acompanhando e acompanhado.
Enganei-me ao ler-te, Clara. Se calhar tu também: havia mais vida. Mas... "Foi assim, pronto!" - o começo de um livrinho que ela escreveu como que para mim vai para quarenta anos.