segunda-feira, 15 de setembro de 2014

António.

Morreu o meu tio António. Nunca fomos próximos. Sobrinho e neto de talhantes, era ele o meu tio do talho, trabalhando no estabelecimento do pai, meu avô paterno. Maciço, corpulento, peludo, a calva mais perfeita da família com um sinal saliente. Conduzia um convenientemente desproporcionado Chrysler, muito antigo, que o meu avô tinha comprado porque, entre outras qualidades, conseguia meter carcaças na mala para levar para o talho da praia do Furadouro. Modernidades conheci-lhe só uma, a de usar calções de banho – coisa que ao meu pai, três anos mais velho, nunca vi – com os quais metodicamente adormecia na praia, para nunca mais. O nosso convívio fez-se nas muitas vezes que fui buscar carne ao talho do meu avô. Esperava, esperava, até que era atendido. Antes tinha saudado com um beijo toda a minha família que constituía a superfície frontal de atendimento: a minha madrinha – a irmã solteira mais velha do meu pai – e a esposa do meu tio António, que, essa, já faleceu há uns bons anos. E capaz de ter havido um tempo mais antigo em que os meus avós paternos também lá estavam. Faleceu, pois. Nem interessa como. Fui ao funeral, o que até serviu para ajudar o meu pai a deslocar-se, algo que já não lhe é fácil. Cumprimentei especialmente os meus dois primos filhos do meu tio, a Paula, o Luís António, ofereci-lhes a minha cara de velho compreensivo que nenhum consolo lhes terá dado. Sem irmãos a vida ofereceu-me catorze primos, treze deste lado da família. Convenientemente distribuídos pelas duas alas de contricção, o Mário, por exemplo, que eu já não via vai para uns dez anos, lembrou-me um colega e amigo que enveredou por Saúde Pública, mas não tão sério – o amigo. Curiosa esta inversão, a família a lembrar-me conhecidos. A minha prima Teresa, na fundo da sua loucura, escrevia sentada. No fim da cerimónia levantou-se e, com algum sem-jeito, pediu a palavra. Disse coisas sobre o meu tio António que o pai dela, Mário também, teria pedido para ela escrever. Não me pareceu que nenhuma das palavras escritas e lidas se aplicasse minimamente ao falecido. Digo isto e arrependo-me profundamente, opino sobre quem na realidade não conheci. A minha prima falou, falou e comoveu pois no fim recebeu palmas. Minto, não foi no fim das palavras sobre o meu tio António. Foi no fim de um outro texto, que ela teria escrito na sua infância, e que acrescentou à récita. Nele dizia e descrevia as flores de que gostava, muitas e muitas, sem mais. O meu tio jazia no caixão de flores rodeado. E com as palavras que a Teresa escolheu ela perdoou a todos aqueles que para homenagear o morto sacrificaram todas aquelas flores. Gostei muito de a ouvir, afinal. E rever os meus estranhos primos.

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