segunda-feira, 13 de março de 2023

As Minhas 101 Leituras: 61-70.



Mulher Certa, A - Sándor Márái.

Sándor Márai nasceu em 1900 em Kassa, hoje Kosice, na Eslováquia, uma cidade que tradicionalmente tinha uma forte população magiar e ficava então sediada na parte húngara do Império Austro-Húngaro. Sándor Márai foi um escritor húngaro muito popular entre as duas grandes guerras. Em 1948 exilou-se e a sua popularidade desvaneceu-se. Esquecido, viúvo, suicidou-se em San Diego em 1989, muito pouco antes do cair de Cortina de Ferro e também pouco antes da sua obra ser recuperada para a ribalta. " A Mulher Certa" conta a história de uma mulher e dos seus amores segundo a óptica de vários intervenientes na história. É-nos portanto apresentado o mesmo enredo várias vezes, três para ser mais preciso, mas nunca é a mesma história que se conta.  A escrita de Márai é clássica, diria até que "antiga", mas este estilhaçar do que se vê em várias perspectivas é muito moderno. Uma história nunca está completamente contada. Até porque, após o Epílogo que encerra o romance, fica uma sensação de um certo dissabor, esperando nós que uma quarta versão da história venha desmentir o amargo na boca sentido. Não vem. Cada capítulo é contado na primeira pessoa, para afirmar ainda mais a sua subjectividade. 

"Começámos a ficar sós. O mundo tem um ouvido apurado. Basta algum sinal, um gesto, e a subtil rede de espionagem alimentada pela inveja, pela curiosidade e pela maledicência começa a suspeitar de qualquer coisa. Basta recusar um convite, basta não convidar, por sua vez, quem nos ofereceu hospitalidade, e eis que, por estes sinais, a sociedade intui que alguém tenta subtrair-se às regras impostas pelo sistema dominante, e logo sabe que esta ou aquela família tem problemas, que um casal está em crise. Quando uma família está para se desagregar, percebe-se esse "qualquer coisa que não vai", como se tivéssemos em casa uma doença contagiosa e o delegado de saúde colasse um papel vermelho na porta do apartamento."


Mulher em Berlim, Uma - Anónima.

Este livro li-o em tradução castelhana. Já existe em tradução para o português. A sua autora não quis dar o nome nem a cara pelo que escreveu como diário sobre a invasão de Berlim pelo Exército Vermelho em 1945. Podia dizer-se que uma parte muito importante da trama trata de como sobreviveu aos soldados russos. E é verdade. O prefácio da primeira edição, escrito pelo poeta Hans Magnus Enzensberger, estima que em Berlim, em 1945, cem mil mulheres alemãs foram violadas pelo Exército Vermelho. Mas há mais. Uma janela tensa, desapiedada sobre o que aconteceu, como uma vitória prometida se transformou em tanto desastre e vergonha.  A primeira edição foi americana e aconteceu em 54. Cinco anos depois a primeira edição alemã foi mal recebida. Era cedo demais. Não me arrisco a traduzir pelo que transcrevo o castelhano que li.

"El comandante se ha quitado el cinturón, la chaqueta, todo a cámara lenta y mirándome de reojo. Yo estoy sentada esperando, siento el sudor en las palmas de las manos, quiero y no quiero ayudarle a desvestirse. Hasta que de repente dice: "Por favor, déme su mano." // Me quedo mirándole fijamente. Querrá hacerme feliz con un besamanos en interpretación libre del manual de urbanidad? O es acaso quiromante? Me toma la mano y la aprieta fuertemente entre las suyas, diciendo al tiempo que le tiembla la boca y sus ojos miran lastimeramente: "Perdóneme. Hace mucho que no he estado con una mujer." // Lo que me faltaba."


Mundo em Números, O - Artur Parreira.

Para um aficionado aos números, este volume 25 da colecção Verbo RTP saída pouco antes do 25 de Abril oferecia-me apenas... o Mundo! Fiz contas e contas e contas, classifiquei, separei, juntei, escolhi.  Países e países e países eram reduzidos a números. Dos cem livros da colecção foi o mais usado. Os meus pais aliás pelo gasto tiveram que comprar um segundo exemplar. Este segundo exemplar tinha uma curiosidade que eu anotei sem medir todo o seu alcance. Enquanto na versão original as ex-colónias portuguesas eram apresentadas como o que eram, colónias iguais a outras que então existiam, eg. as Guianas Francesa e Holandesa, na segunda edição do livro um apartado reafirmava a unidade nacional portuguesa e a nossa dimensão multicontinental, etc., etc- Isto, se não me engano, em 1972!


Mundo, O - Juan José Millás

Millás é o escritor espanhol de que eu mais aprecio. Não sei se ainda escreve no El País, mas as suas crónicas quando apareciam justificavam a compra do jornal. Nascido em Valencia em 1946, foi para Madrid com seis anos com o seu pai, um conhecido inventor. Será daqui que nasceu a escrita de Millás, das mais inventivas que já li. O livro "O Mundo", semi-autobiográfico, li-o, não o tenho. É uma preciosidade. E fez de mim um fã deste lunático escritor. 

" - Tú no eres interesante para mí. // Yó continué caminando a su lado, pero al modo en que un pollo sin cabeza continúa volando, o sea, muerto. Aquella frase me había roto literalmente el corazón. Un cuchillo oxidado no habría tenido efectos más devastadores. Continué andando, pues, por pura inercia hasta su casa y luego seguí hasta la mía sabiendo que ya no era necesario imaginar que iba a morir al minuto siguiente porque ya estaba muerto. Entré muerto en casa y logré alcanzar, muerto, el cuarto de baño para ocultar la trágica situación a la familia. Al mirarme en el espejo reconocí en mi rostro todos los atributos de un cadáver. Tenía la nariz afilada y el rostro pálido como la cera. Sabía que la nariz afilada era un síntoma cadavérico porque se lo había escuchado a mi madre a propósito de una foto del cadáver de Pío XII en el periódico. Ella dijo «nariz afilada» y «rostro cerúleo». Así estaba yo delante del espejo, con la nariz afilada y el rostro cerúleo. No era que la vida hubiera perdido sentido, es que ya no había vida."


Mundos de Fronteira - Ilse Pollack

Esta escritora austríaca, que viveu alguns anos em Portugal, escreve aqui sobre vários escritores e personagens culturais da Europa Central e Oriental num tempo de transição entre os séculos XIX e XX. O cerne é o mundo do Império Austro-Húngaro, esse passado enorme que pesa sobre toda esta geografia. Da Galícia para Praga, de Trieste até Viena. O ensaio final chama-se ""Mitteleuropa", mito e realidade." Um mundo que sempre me fascinou e que nunca me pareceu melhor lido do que nestas páginas. 

"Em todos eles, judeus ou não, encontramos a mesma problemática da identidade ou, para lembrarmos as palavras de Frank Werfel, outro famoso autor de Praga, a dupla e tripla situação de apátridas, essa herança de tosos os naturais de Praga não eslavos. Praga significava para estes escritores o lugar onde se sentiam dolorosamente desenraizados, porque era a capital de um povo que, apesar de várias tentativas de aproximação, nunca deixou de lhes ser estranho. Esta é também a razão pela qual muitos deles deixaram a sua cidade natal, na busca de integração noutros centros do mundo alemão ou austríaco (e preferiam quase sempre a Alemanha, Berlim, e não Viena). Esse sentimento de estranheza agudizou-se nos escritores judeus do chamado Círculo de Praga, devido à crise de assimilação a que nos referimos antes. O que ligava entre si os membros desse grupo era menos o facto de todos serem judeus do que o facto do seu judaísmo se ter tornado problemático a partir de certa altura."


Musa Irregular, A - Fernando Assis Pacheco

Nascido em 1937, Fernando Assis Pacheco, jornalista e escritor, não se entregou a uma qualquer geração. Figura central de uma certa imagem de uma Lisboa um pouco boémia, um pouco intelectual, etc., viveu em Coimbra até aos 24, quando foi chamado  para a tropa, tendo depois seguido para a guerra em Angola. Escreveu a melhor poesia portuguesa sobre esta tão esquecida guerra, e escreveu da melhor poesia portuguesa, de que o livro acima é a colecção. A sua raiz neo-realista (é contemporâneo de Manuel Alegre) foi com tempo largamente ultrapassada por um grande lavor literário e um sentido de humor que o fez, para não ir mais longe, falecer subitamente, aos 58 anos de idade, à porta de uma livraria.

Acontece-me assim às vezes, não sei onde está o meu exemplar de "A Musa Irregular".

CANÇÃO DO ANO 86

Agora quando volto / quando é raro voltar e sempre por um dia / estou à minha espera na ponte de Santa Clara / com um ramo de rosas que levanto / à aproximação do carro / saudando-te caro Fernando Assis Pacheco / filho pródigo destes quintais floridos // quando acontece que volto / que assim volto por pouquíssimo tempo dou comigo / na berma da EN 1 a olhar à esquerda o Vale do Inferno / hoje estragado por um sacana qualquer dum engenheiro / dizendo adeus adeus Fernando Assis Pacheco / menino antigamente sem cuidado // se é que volto intimado pela agenda / do jornal em Condeixa já inquieto espreito / a ver se vens dos lados de Pombal / oitavo duma fila atrás dum camião / coçando a barba gesto bem teu / com que disfarças o nervoso e a pressa // volto sem querer quando decerto / mais não queria voltar / encasacado anónimo de olho circunvago / Leiria num relance prego no fundo / apetecia parar ao pé de ti Fernando Assis Pacheco // cálido aceno do que morreu / conversamos os dois sobre esse século esses / cafés com quatro mesas e matraquilhos na cave a cheirar a bolor / essas aulas a que faltávamos no último período para empatar / cinco a cinco com os varões todos torcidos // consta que desde então


Neve - Orhan Pamuk

Procurei Orhan Pamuk para tentar entender a Turquia, esse magnífico e doloroso país pendurado entre a Europa e a Ásia, mais propriamente o Próximo Oriente. "Neve" é de 2002 e aconteceu pouco tempo antes de Pamuk ter conquistado o Prémio Nobel em 2006.

O enredo gira á volta da visita de um escritor em bloqueio criativo, de seu nome Ka, à cidade de Kars, na Anatólia Oriental, perto da fronteira arménia e no coração da Turquia Curda. Está para acontecer uma eleição local, os militares receiam a eleição de um militante curdo para a Câmara. Ka entretanto apaixona-se perdidamente por uma amizade da adolescência. Ipek.

Este livro, de uma forma nada oblíqua, retrata a confusão política turca. Em Kars há mil lados e versões da verdade, e todas querem ser ouvidas pelo escritor em visita. Ka, porém, o que ele queria mesmo é que Ipek se apaixonasse por ele... e a neve vai caindo sempre, é Inverno.

"- Sabes o que estás a fazer ao recusares dizer-nos onde está escondido um terrorista islâmico com as mãos manchadas de sangue e pago pelo Irão? - perguntou o tio Mahmut - E, se chegarem ao poder, sabes muito bem o que eles vão fazer aos liberais da tua espécie, complacentes e europeizados, não sabes? - Ka respondeu que, no fundo, sabia, mas o tio Mahmut contou de novo, com muitos pormenores, como no Irão os democratas e os comunistas, que tinham feito uma aliança com os mulás antes de estes chegarem ao poder, foram todos assados e grelhados; e voltou a contar as histórias indecentes: metiam-lhe dinamite no ânus e faziam-nos explodir, fuzilavam as prostitutas e os homossexuais, proibiam todos so livros com excepção dos livros religiosos, não toleravam os snobes intelectualóides como Ka, rapavam-nos todos e depois confiscavam-lhes os seus livros ineptos de poesia... A seguir, com um ar cansado, perguntou mais umas vez a Ka donde vinha quando foi recolhido e onde se escondia Lazúli."

Mas do que eu me lembro mais ainda é da absoluta paixão de Ka por Ipek...


Neverwhere - Neil Gaiman

Neil Gaiman é sobretudo conhecido como argumentista de uma das mais importantes bandas desenhadas dos últimos cinquenta anos, Sandman. Já falei dele a propósito de Miracleman IV.

É porém fatal como o destino estes rapazes quererem ser tomados mais a sério e começarem a escrever... livros. Idem o nosso amigo Gaiman. Neverwhere não segue porém esse caminho. O livro é a novelização expandida do argumento de uma série criada nos anos 90 por Neil Gaiman para a BBC. Enquanto a série teve êxito quase apenas doméstico, o livro Neverwhere ganhou uma boa exposição internacional.

Gosto muito deste livro, que é afinal e apenas uma história de amor onde uma anónimo rapaz londrino se vê arrastado para toda uma trama fantástica que se desenvolve numa Outra Londres (London Below) que existe... debaixo de Londres e consegue salvar este mesmo mundo da sua destruição. Tudo começa quando Richard Mayhew pára para ajudar uma jovem mulher caída na rua, contrariando a sua pispirreta noiva. A jovem mulher caída no chão resulta ser Lady Door, a herdeira de uma casa importante em London Below, e que é perseguida. O contacto com a gente de London Below torna Rochard Mayhew invisível ao mundo cá de cima, pelo que a aventura torna-se uma inevitabilidade.

Começa-se a ler e só se termina no fim.

"Na manhã de segunda-feira, o despertador de Richard não tocou. Saiu para a rua a correr às dez para as nove, com a pasta a balouçar e descendo a rua como um louco, rezando para encontrar um táxi. Depois suspirou de alívio porque um grande carro preto descia a rua na direcção dele, com o sinal amarelo a dizer TAXI iluminado Acenou-lhe e gritou. // O táxi passou por ele devagar, ignorando-o por completo, dobrando uma esquina e desaparecendo. // Outro táxi. Outro sinal luminoso, anunciando disponibilidade. Daquela vez, Richard avançou para o meio da rua para o parar. Contornou-o e seguiu em frente. Richard começou a praguejar entredentes. Depois correu para a estação de metro mais próxima. // Puxou um punhado de moedas do bolso, cravou o dedo no botão da máquina automática para comprar um bilhete único para Charing Cross e enfiou os trocos na ranhura- Cada moeda que introduzia caía directamente para as entranhas da máquina e tilintava no tabuleiro do fundo. Não surgiu qualquer bilhete. Tentou outra máquina, com a mesma ausência de resultado. E outra. O vendedor de bilhetes no guiché falava com alguém ao telefone quando Richard se aproximou para reclamar e comprar o bilhete manualmente. E apesar de (ou talvez por isso) Richard gritar "Ei!" e "Desculpe!" e das batidas desesperadas na divisória de acrílico com uma moeda, o homem manteve-se inabalável ao telefone. ""  - Que se foda! - declarou Richard, saltando sobre a barreira. Ninguém o viu. Ninguém pareceu importar-se."

No Castelo do Barba Azul - George Steiner.

George Steiner foi-me apresentado por um amigo meu, o Luís Lopes. Escolho este livro dos vários que já li pelo arrojo de alguns raciocínios que o brilhante pensador aqui apresenta, judeu nascido em Viena, fugido com a família primeiro para Paris depois para os Estados Unidos, naturalizado americano e com um percurso académico no Reino Unido, onde faleceu. 

O livro em questão foi publicado em 1971 e resulta de quatro conferências apresentadas em Canterbury na Universidade de Kent, as T.S. Eliot Memorial Lectures, onde Steiner dialogava com um livro de 1948 de T S Eliot, "Notes Towards The Definition of Culture". 

No primeiro capítulo/conferência Steiner viaja até ao séc. XIX, e chama-se "O Grande Tédio" Define o carácter único que o séc. XIX teve no definir de um certo ideal europeu e como porém este, paradoxalmente, já tinha em si um apelo destruidor que desembocaria no séc. XX. Utiliza para ilustrar esta ideia os mais variados exemplos. "Todas estas correntes de frustração, de alívio ilusório e derrota irónica se encontram documentadas com uma precisão sem igual nos romances e na vida privada de Flaubert. A figura de Emma Bovary encarna, a um nível cruelmente trivializado, as energias suscitadas e contrariadas dos sonhos e desejos aos quais a sociedade dos meados do séc. XIX não proporcionava saída".

O segundo capítulo chama-se "Uma Temporada no Inferno" e debruça-se sobre a "Guerra dos Trinta Anos" que começou em 1915 e terminou em 1945. Aqui entra o livro de T.S.Eliot, escrito logo depois. E que Steiner pretende ultrapassar na sua tentativa de analizar "o que aconteceu", nomeadamente o Holocausto. "(...) não há histeria programada que dê suficientemente conta de certos aspectos maiores do problema. Entre estes deve incluir-se a indiferença activa - "activa" porque se tratrou de uma "indiferença colaboradora" - da vasta maioria da população europeia. (...) Mas talvez o enigma maior seja a persistência de um anti-semitismo virulento onde não há sobreviventes judeus ou apenas um punhado deles (por exemplo, na actual Europa de Leste). O mistério, em sentido propriamente teológico, é aqui de um ódio sem objecto actual." Steiner postula: ""Monoteísmo do Sinai, cristianismo primitivo, socialismo messiânico: tais são os três momentos supremos em que a cultura ocidental se confronta com aquilo que Ibsen chamou "as reivindicações do ideal". Três estádios, profundamente interligados, nos quais a consciência ocidental é forçada a haver-se com a chantagem da transcendência". Contra isto aconteceu o Holocasto, defende Steiner. "Com a tentativa falhada de matar Deus e a tentativa quase conseguida de matar aqueles que O tinham "inventado", a civilização entrou, justamente conforme a previsão de Nietzsche, "na noite cada vez mais noite".

O 3º capítulo chama-se "Numa Pós-Cultura".  E começa assim: "Antes do mais, teremos que proceder ao inventário possível do irreparável". Que, para Steiner, é muito. A ideia central é a incapacidade da cultura para nos defender do horror e até para pelo contrário engendrar com ele alguma convivência. E talvez por isso a cultura dita clássica esteja (em 1971) a tornar-se um bem marginal. "Em termos psicológicos, há um fosso de anos-luz entre a sensibilidade característica dos meus anos de aprendizagem, segundo os moldes franceses tradicionais, com a insistência óbvia no prestígio do génio e na reivindicação de um para além da morte fecunda, e a atitude peculiar dos meus alunos. Serão dados ainda nomes de matemáticos às pracetas das nossas cidades?"

Após o pessimismo "terminal" do 3º capítulo Steiner abalança-se ao 4º e último chamando-o de "Amanhã". E o engraçado é ler este capítulo cinquenta anos depois. E Steiner em  parte não acerta em adivinhar o futuro mas observa bem o que estava a acontecer e depois só se acentuou. "De novo é a América o exemplo mais representativo e mais premonitório. Em parte alguma o enfraquecimento de uma efectiva cultura literária foi mais longe (consultem-se os inquéritos recentes sobre os níveis de leitura e compreensão das high schools americanas).". "As mesma transformações de uma cultura triunfante numa pós ou subcultura manifestam-se também num "recuo da palavra" generalizado. (...) A palavra torna-se cada vez mais legenda da imagem". Mas Steiner termina, a custo, com uma nota optimista. "Em termos ecológicos e de ideias de sensibilidade, o custo das revoluções científicas e tecnológicas dos quatro últimos séculos foi muito elevado. Mas (...) poucos foram os que radicalmente duvidaram da necessidade do trajecto. Nesta certeza amplamente irreflectida houve uma componente de apetite económico, uma imensa fome de conforto e abundância material. Mas houve também um mecanismo muito mais profundo: (...) de que se trata de um movimento natural e meritório em si mesmo, de que a relação do homem com a verdade é uma relação de persistência de busca. Abrimos as portas sucessivas do Castelo do Barba Azul porque "há portas", porque cada uma delas leva à seguinte mediante uma lógica de intensificação em que o espírito toma consciência do seu próprio ser. Deixar uma porta fechada seria não só uma cobardia como uma traição (...)- Somos caçadores que perseguem a verdade, leve esta onde levar." E termina assim: "Se o dur désir de durer foi a mola da cultura clássica, talvez a nossa pós-cultura se caracterize por preferir não durar a ter que despedir-se dos riscos do pensamento. A capacidade de encararmos a autodestruição como um possível, prosseguindo o debate com o desconhecido, não é uma perspectiva de somenos." 

Steiner escreveu em plena Guerra Fria, no apogeu do medo nuclear. Hoje temos a catástrofe climática a bater-nos à porta. Ao enganar-se Steiner escreveu certo. 


Nome de Guerra - Almada Negreiros-

Foi na História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e Óscar Lopes que eu li a importância deste romance, que eu depois devorei entusiasmado. E, na realidade, o ser este livro de 1925 faz dele uma ilha isolada na prosa que por então acontecia em Portugal. Almada Negreiros, o impulsivo modernista que era bailarino, desenhador, pintor, poeta e tudo, saiu aqui dos textos curtos e explosivos que até então o tinham caracterizado e resolve contar numa rajada só toda uma história, que é a história da iniciação na vida (lisboeta, como não podia deixar de ser) do Antunes, um provinciano rapaz cujo tio leva às putas para fazer dele um homem. O que depois acontece é para ser lido com o máximo dos prazeres, porque Almada apresenta-se aqui como poucos no melhor uso da palavra, ora lírico ora sentencioso ora ainda apenas zombeteiro, nunca nos deixando porém indiferentes. E ficamos também a conhecer a Judite.

"(...) E tu julgas que dura sempre isto de haver quem goste da gente, só para dar dinheiro? Tu ainda não compreendes isto! Não dura sempre, infelizmente. Há sempre quem tenha a mania de gostar das mulheres e dar-lhes dinheiro, mas se a gente não se governa a tempo, adeus minhas encomendas. E se tu és meu amigo verdadeiro deves ver estas coisas. E não deves ser tu precisamente que és o meu único amigo verdadeiro que hás-de vir estragar-me a vida. Deixa lá que ainda havemos de ser felizes os dois, com a nossa casinha e as nossas coisas. Mas é preciso que tu vejas as coisas como elas são e não te ponhas com orgulhos! Também eu sou orgulhosa e não tenho outro remédio senão fazer como faço. Já te disse que não tenho necessidade nenhuma de me meter com uns e com outros para ter o dinheiro que eles me dão por sua livre vontade. O mundo é assim, que mais queres tu? Queres emendar o mundo?! Já jantaste? // - Não! //  - Vês, isso é que me custa!"








 



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