quarta-feira, 22 de março de 2023

Da Sight & Sound a Pedro Almodóvar

Não páro de cismar com a lista dos melhores filmes da Sight & Sound de 2022. E isto ainda mais quando penso em algumas coisas que lá estão e outras que não estão. Primeiro, a lista não é de 100 filmes mas foi alargada para 250. O que permite, embora resvés, a inclusão do "Quarto da Vanda" do Pedro Costa. Empatado nos lugar 122 estão Matrix e Johnny Guitar. Nicholas Ray estará a cair em desgraça? E o único filme de Almodóvar a aparecer nesta contagem é, sem surpresa nenhuma, Todo Sobre Mi Madre, empatado com mais 11 filmes no lugar 157, filmes como Los Olvidados de Buñuel, O Evangelho segundo S.Mateus, de Pasolini, Vivre Sa Vie de Godard, Onde Upon a Time In America de Sergio Leone. Nenhum filme dos irmãos Coen entra aqui (nem Fargo nem o Big Lebowski), nenhum Nanni Moretti e também não comparece à chamada o meu amado Ferris Bueller's Day Off. Com pôde acontecer?

Mas volto a Almodóvar. Almodóvar cujos filmes iluminaram as minhas idas ao cinema durante mais de uma década, até o trabalho e a paternidade mudarem-me da sala escura para o quarto escuro. Almodóvar cujos filmes que eu mais gosto são "Que He Hecho Yo Para Merecer Esto" e "Hable Con Ella". E passo a explicar a minha tese, que me vai obrigar á visualização e revisão da filmografia Almodóvar, incluindo filmes que nunca vi: o Almodóvar do século XX é mais interessante do que o Almodóvar do século XXI. O cinema de Almodóvar, gerado na Movida Madrilenha dos anos setenta/oitenta, mais do que cinema, oferecia-nos uma outra forma de vida, excitante, colorida, estapafúrdia, espampanante e muito mais agradável de viver do que a cinzenta vida nossa (no cinema, claro, sem riscos!). O auge temático desta proposta foi o filme "Todo Sobre Mi Madre", que me proponho rever, o único nomeado para o Óscar - que não ganhou - e um êxito de crítica internacional. "Hable Con Ella" acontece em 2002 e o ponto de partida do argumento - a segunda e última nomeação para Óscar de Almodóvar, pelo argumento - é um rabo residual de lagartixa desta vida outra que os filmes de Almodóvar (no séc. XX) encarnavam. Uma última pérola. É também um filme visualmente sem defeito. O comércio está ao virar da esquina, quando Caetano canta brilhantemente "Paloma". Mas Almodóvar nunca quis ser um cineasta alternativo. E o século XXI parece-me a mim trazer-nos um Almodóvar demonstrativo do seu saber filmar mas aqui e ali redundante e, francamente, com muito menos piada. Almodóvar era mais do que cinema. Agora não. Lembro-me de ter sentido isso ao ver em cinema "Volver", com Penelope Cruz a oferecer-se o seu momento "italiano" e um retorno de Carmen Maura a fazer de "fantasminha", o que pouco acrescentou. Menos ainda o filme "Abrazos Rotos" de 2009,  que vi pela primeira vez anteontem, um melodrama em tons de Hitchcock outra vez com a P Cruz e que, por puro cansaço, para o fim da história copia/recria como piada inside uma das cenas chave do "Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios". Que aburrimiento! 


Nada aborrecido era o filme "Que He Hecho Yo Para Mercer Esto!". Estamos em 1984, e o filme anterior de Almodóvar tinha sido uma chachada de partir a rir com freiras toxicodependentes. A cinematografia de Pedro Almodóvar começou realmente em 1984.

A história conta-se paradoxalmente em poucas palavras: Carmen Maura (um grande papel de uma grande actriz) é Gloria, uma mulher de limpeza com um marido taxista grosseiro e abusador, dois filhos de 12 e 14 anos, o mais novo prostituto e o mais velho traficante de heroína, uma sogra muito especial e uma vizinha puta. Não há dinheiro, ele nunca chega, nem quando a família adopta um lagarto e o apelida (porque é verde) de "Dinero". Almodóvar cria uma história onde o cheiro da libertinagem das suas obras prévias ainda tem rédea solta: o filho mais novo acaba vendido a um dentista pedófilo, o marido taxista tem uma fixação numa velha cantora alemã (que terá conhecido quando emigrado), ouvindo sempre a sua canção, Almodovár aparece a fazer o playback da canção "La Bien Pagá", Gloria usa e abusa de pastilhas para aguentar o seu terrível quotidiano. Todo este folclore não faz esquecer o drama desta vida nos subúrbios dos anos sessenta em Madrid, colados à M-30, aliás amplia-o. Gloria nunca consegue nem o prazer nem a felicidade nem a paz - a não ser talvez (a paz) no fim. As drogas, o surrealismo do argumento, permitem sobreviver a uma história que seria de outra forma demasiado dura. E todas as voltas intrincadas do argumento podem ser testadas: Gloria toma pastilhas? Não tomarias tu também se ali vivesses? O rapaz de 12 anos vende-se/é vendido? Mas só assim arranja os dentes, tem os estudos pagos, e apesar de tudo depois volta para casa! O mais velho trafica heroína? Mas não consome, e junta dinheiro para ir para a aldeia com a avó. A filha de uma vizinha tem super-poderes? Claro, e assim vinga-se da crueldade da mãe! Volto ao playback de "La Bien Pagá" que Almodovar & McNamara interpretam: a letra do bolero fala de dinheiro, de amor comprado. Este filme fala da falta de dinheiro e de como não pode haver amor sem ele. Gloria não o encontra, por mais que procure. 


Gloria e os homens não se entendem. Almodóvar filma em 1984 como os homens não se preocupam com o prazer da mulher, uma e outra vez. Este filme é tão bom quanto imperfeito. A cinematografia não é perfeita, embora o seu brutalismo até jogue com o subúrbio e a M-30. Há rodriguinhos dispensáveis - a viagem à Alemanha, por ex. Porém, este filme é bem maior do que a própria vida que no entanto aqui tão bem retrata. É um filme trágico, terrível. Tem dos melhores momentos de comédia que eu já vi. É para mim um Grande Filme.

Pedro Almodóvar filma a seguir "Matador", o primeiro filme dele a ter ressonância aqui em Portugal, e depois "La Ley Del Deseo", filme que vou procurar rever. "El Deseo" é o nome da produtora constituida por Pedro Almodóvar e o irmão Agustín.

 

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