CAPÍTULO 5
DESGRAÇADOR
"Um dia na cidade do Porto presenciei uma cena entre um homem e uma
mulher que nunca mais pude esquecer. O cenário onde isto se passou é dos
mais pitorescos que os meus olhos viram: a Ribeira, ou a Ribeira Velha, creio
eu que lhe chamam. É um cais sobre o Douro, perto da Ponte de D. Luís.
Todo o aspeto em redor é pesado e amontoado, conforme o carácter da
cidade. Desde aquele cais a cidade sobe sempre em todas as direções até à
Torre dos Clérigos. Na outra margem a ascensão iguala-se à de cá, de modo
que o rio parece ter metido pelo mais alto de um monte que ficou dividido.
Tudo isto faz com que o cais nos dê a estúpida impressão de estar enterrado.
Lembro-me de umas interessantíssimas casas cujos alicerces se adivinham por
causa da solidez com que as suas fachadas intimam os nossos olhos. Julgo
serem vermelhas, ou foi a impressão violenta da cor que me deixaram. Do que
bem me lembro é dos arcos em vez de portas e de umas janelas que pareciam
desviadas dos seus respetivos lugares. Os arcos abriam umas lojas não sei de
quê, pois fixei apenas os seus fundos negros, os mais negros e os mais fundos
que lenho conhecido.
Pondo por cima disto tudo uma camada de antiguidade cor de ardósia e de
ferrugem, de nevoeiro fabril e de salitre, a descrição deve ficar aproximada,
descontando, é claro, o autor e a circunstância de ter gozado esta vista apenas
uma vez.
No cais as pessoas são bem as das respetivas casas. A aglomeração de gente
é como a do casario. Um mercado justifica aquela frequência. Além disto, a
carga e a descarga das fragatas ocupa uma quantidade imensa de mulheres e de
homens, mas sobretudo mulheres. É uma raça diferente da do mercado.
Poucas vezes me foi dado compreender melhor o que significam aquelas
palavras: ganhar o pão de cada dia, do que ao ver essas mulheres que iam e
vinham sobre duas grossas e compridas pranchas de madeira lançadas desde a
borda da fragata até ao cais, numa distância parecida com uns dez metros. O
equilíbrio dessas mulheres não tinha uma hesitação à altura de três homens da
água, e em menos de três palmos de largura durante os dez metros.
Acrescente-se a isto que levavam à cabeça as canastras, umas vezes vazias e
outras vezes cheias até acima, em pirâmide, conforme iam ou vinham da
fragata. Daquela vez não me lembro que descarregavam; apetecia-me que
fossem laranjas, mas não insisto com a memória; tenho, contudo, ainda na
mente a maneira rápida como davam conta daquele serviço, conservando
sempre um tempo ginástico, e não digo militar, porque, além dos gestos
sóbrios e simplificados, corrigidos para o próprio trabalho repetido em que
andavam, havia também uma beleza de linhas e de formas à qual não era
estranha a sua natureza feminina. O gesto de abaixarem-se para acertar a
cabeça ao meio da canastra carregada, a marcha sobre a prancha com o peso
todo à cabeça, o modo de despejar a canastra inclinando o corpo de lado pela
cintura, eram exatos e cheios de graça. As alcochetanas que descarregam das
fragatas o carvão inglês no cais de Lisboa por este mesmo processo não
podem infelizmente ser-lhes comparadas. Se não lhes falta a graça, a sua graça
é outra, mas não dispõem das ossaturas opulentas das mulheres do Norte e
muito menos daquela dignidade externa, a qual me surpreendeu em mulheres
de pé descalço. Eram umas dezenas de mulheres todas semelhantes. Por
contraste com a sua atividade, havia no cais uns homens sentados e outros
deitados ao sol em sacas de sarapilheira cheias de mercadoria. Para um destes
homens aquelas dezenas de mulheres não eram todas a mesma; esperava
sempre que essa passasse mais perto donde ele estava para lhe dizer o que
tinha a dizer-lhe. A rapariga não fazia caso e seguia como as outras. Era um
dito qualquer e talvez sempre o mesmo de todas as vezes que acontecia chegar
a altura de ela passar por onde ele estava. Centenas de vezes, e não falhou
uma! Mas de uma vez a rapariga vinha a meio da prancha com a canastra
carregadinha, e ele começou logo como de costume a gracejar com ela; sem
ninguém esperar, ali mesmo de cima da prancha parou de repente, despejou a
canastra no rio, apontou o braço livre em direção ao tal homem e com o
sangue todo nas faces disse-lhe esta única palavra:
— Desgraçador!
Nunca mais esquece esta palavra."
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