Em dois dias o meu pai vai fazer noventa anos. Uma vez mais não sei o que oferecer-lhe. Ainda ontem jantei a seu lado. As suas limitações de corpo são bastantes, os pequenos passos, a incerteza na articulação da perna, acho que o direita, a intolerância ao mais pequeno esforço, ambos os pulmões armadilhados pelo enfisema. "Como estás?" - "Estou bem." Despertam-lhe atenção poucas coisas, pergunta-me semanalmente por umas mochilas que por ali - pela casa dele e que já foi duas vezes minha - deixei, possivelmente uma meia dúzia daquelas pastas azuis da Bayer que eram antes frequentes nos congressos, eu respondo-lhe que as pode pôr no lixo, ele em silêncio discorda, por isso volta à carga na semana a seguir: "Tens aí umas mochilas...".
Tinho ido assegurar-se de que a Melodia jantara. O regime alimentar de uma cadela domina as actualidades naquela casa. Sentou-se a meu lado, ofegante, a expiração prolongada. "Mas comeu! E comeu a batata!" A cadela adquiriu o hábito - o vício - de, depois de jantar, lhes pedir uma batata crua. Que, pelo veterinário, para nada serve porque os cães não absorvem amidos. Discordo do veterinário, amigo que sou da mesma cadela, sei eu bem que muitas coisas como e que para nada de bom me servirão. Que faço coisas - este escrever para não ir mais longe - que a utilidade é nada. Mas faço, como, comemos. Assim o meu pai, adivinho, a raiar a hipóxia, satisfeito pelo jantar acontecido e terminado, o dos quatro convivas à mesa, pai, mãe, filho e neta, e de uma cadela um longínquo piso mais abaixo.
Noventa anos é mesmo muito tempo. Talvez como presente agradecer-lhe de viva voz estes noventa anos. Sei eu bem que esta benesse que terça-feira vou receber não acontece a todos, nem a todas.
O meu padrinho que me deu o primeiro triciclo, o primeiro livro. Parece que foram ontem esses natais inesquecíveis.
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