segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O Exame, de Cristian Mungiu (with spoilers).

Porque decido ver um filme? Porque fui ver o filme “O Exame” de Cristian Mungiu (vidé entrevista)? Por um equívoco de metalinguagem. Nem mais. Giro. Correu bem.

É de cem minutos a demora média de um filme. É muito tempo. É um piscar de olhos. 

O PIB per capita da Roménia é metade do de Portugal. Tenho talvez metade da capacidade de esforço que tinha há vinte e cinco anos. Fiz recruta há, isso, exactamente 25 anos. Sofri o velho teste de Cooper à entrada e à saída. Impressionante o que um mês fez pela minha capacidade física, já então no limiar da deficiência. Hoje… O romeno é uma língua engraçada, soa a italiano cortado com checo, como se fosse uma droga de rua. Soa bem mesmo assim, como as drogas de rua que batem bem mesmo assim, cortadas. Portugal vive em queixa. Imaginem agora metade do nível de vida que temos, metade ou um pouco menos.

E, porém, o nível de vida não tem nada a ver com a vida das pessoas, suas curvas e acidentes. As linhas que prendem e seguram, grossas ou finas. Sempre há  linha que é mais fina, mal entrançada ou enganosa na força. Pensamos que apenas parte delas são importantes, que há aquela e aquela amarra que podemos deixar cair e porém olhamos para baixo e o abismo logo aparece, logo ali. Assim o filme, que é o filme sobretudo de um pai, um cirurgião predominamente honesto numa Roménia predominantemente mini/médio-corrupta, que quer lançar a filha, rapariga de boas notas para fora dde tudo aquilo, para Cambridge, para fugir ao PIB per capita inferior a metade do português. Um romeno que sobreviveu a toda a Roménia – tem idade para ainda ter conhecido Ceausescu, e depois a transição, e depois todos os desastres da história política romena recente… - mas que quer, em suma, que a filha deixe de ser romena. Um doente meu pagou o curso de medicina a um sobrinho na Roménia – correu bem, divertiu-se imenso, foi bem recebido mas as palavras-chave são “já voltou”. Ninguém quer aquilo?

O filme tem duas cenas que ditam a sua qualidade, que me parece bastante. Numa a polícia romena, num alto arborizado e servido por um teleférico, procura alguém. Vemos meia dúzia de polícias, parados, com binóculos, olhando para um lado, para o outro, parados. Procuram sem procurar. Que se só para que conste. O chefe de polícia, amigo de infância do cirurgião, conversa com este sobre o que são os "factos da vida" na Roménia. E depois diz: “Bela vista, esta!”. Responde o cirurgião: “Quando éramos crianças a vista para o outro lado era a melhor. Mas as árvores cresceram!” Sim, como ver? Como decidir? As árvores cresceram. Pouco depois o cirurgião, que degrau a degrau vi perdendo mulher, amante, filha, honestidade, carro, numa paragem de autocarro julga ver o maltratador da sua filha. Sai e procura-o, no meio da noite, por entre estranhas casotas de madeira, zonas abandonadas. Mas nada lhe acontece. Nada. Espera-se um ataque que não acontece. Chega a casa da amante e dorme no sofá. "Onde" em sua casa dormia antes, no sofá.

Assim é sempre, as verdadeiras e definitivas crises são raras, vislumbramos o abismo, o ataque, a degola. E não. O tempo passa e sempre acontece menos do que parecia. Mas passa o tempo, ora se passa. Cem minutos, e o fim de um período lectivo. Pai a querer o melhor para a filha. Filha que duvida. O que um filho não vê não é visto - regra número um.

O exame final acontece, no Norte costumamos dizer que “quem não chora não mama”. Uma vez vigiei uns testes, uma aluna começou a soluçar, não entregava o teste, já passava a hora. Esperei um pouco. Outra aluna veio ter comigo. “Quero o meu teste de volta. É que se não recolhe o dela...”. A Roménia não é Portugal, na minha consulta muitos doentes contam-me de familiares mais novos que emigraram, sem grande drama anexo, que estão bem, que talvez não voltem. Mas eu não sou cirurgião. Ninguém é o outro ninguém. A dificuldade está no alguém que tentamos ser e, no entanto, o caminho para lá não é fácil de ver, crescidas as árvores - lá e cá.



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