Porque decido ver um
filme? Porque fui ver o filme “O Exame” de Cristian Mungiu (vidé entrevista)? Por um equívoco de metalinguagem. Nem mais. Giro. Correu bem.
É de cem minutos a
demora média de um filme. É muito tempo. É um piscar de olhos.
O PIB per capita da
Roménia é metade do de Portugal. Tenho talvez metade da capacidade
de esforço que tinha há vinte e cinco anos. Fiz recruta há, isso,
exactamente 25 anos. Sofri o velho teste de Cooper à entrada e à
saída. Impressionante o que um mês fez pela minha capacidade
física, já então no limiar da deficiência. Hoje… O romeno é
uma língua engraçada, soa a italiano cortado com checo, como se
fosse uma droga de rua. Soa bem mesmo assim, como as drogas de rua
que batem bem mesmo assim, cortadas. Portugal vive em queixa.
Imaginem agora metade do nível de vida que temos, metade ou um pouco menos.
E, porém, o nível de vida
não tem nada a ver com a vida das pessoas, suas curvas e acidentes.
As linhas que prendem e seguram, grossas ou finas. Sempre há linha que é mais fina, mal entrançada ou enganosa na força.
Pensamos que apenas parte delas são importantes, que há aquela e
aquela amarra que podemos deixar cair e porém olhamos para baixo e o
abismo logo aparece, logo ali. Assim o filme, que é o filme sobretudo
de um pai, um cirurgião predominamente honesto numa Roménia
predominantemente mini/médio-corrupta, que quer lançar a filha, rapariga de
boas notas para fora dde tudo aquilo, para Cambridge, para fugir ao PIB per
capita inferior a metade do português. Um romeno que sobreviveu a
toda a Roménia – tem idade para ainda ter conhecido Ceausescu, e
depois a transição, e depois todos os desastres da história
política romena recente… - mas que quer, em suma, que a filha deixe de ser romena. Um doente meu pagou o curso de medicina a um sobrinho na
Roménia – correu bem, divertiu-se imenso, foi bem recebido mas as
palavras-chave são “já voltou”. Ninguém quer aquilo?
O filme tem duas
cenas que ditam a sua qualidade, que me parece bastante. Numa a
polícia romena, num alto arborizado e servido por um teleférico,
procura alguém. Vemos meia dúzia de polícias, parados, com
binóculos, olhando para um lado, para o outro, parados. Procuram sem procurar. Que se só para que conste. O chefe de
polícia, amigo de infância do cirurgião, conversa com este sobre o
que são os "factos da vida" na Roménia. E depois diz: “Bela vista,
esta!”. Responde o cirurgião: “Quando éramos crianças a vista
para o outro lado era a melhor. Mas as árvores cresceram!” Sim, como
ver? Como decidir? As árvores cresceram. Pouco depois o cirurgião, que degrau a degrau vi
perdendo mulher, amante, filha, honestidade, carro, numa paragem de
autocarro julga ver o maltratador da sua filha. Sai e procura-o, no
meio da noite, por entre estranhas casotas de madeira, zonas
abandonadas. Mas nada lhe acontece. Nada. Espera-se um ataque que não acontece. Chega a casa da amante e
dorme no sofá. "Onde" em sua casa dormia antes, no sofá.
Assim é sempre, as
verdadeiras e definitivas crises são raras, vislumbramos o abismo, o
ataque, a degola. E não. O tempo passa e sempre acontece menos do
que parecia. Mas passa o tempo, ora se passa. Cem minutos, e o fim de um
período lectivo. Pai a querer o melhor para a filha. Filha que duvida. O que um filho não vê não é visto - regra número um.
O exame final acontece, no
Norte costumamos dizer que “quem não chora não mama”. Uma vez
vigiei uns testes, uma aluna começou a soluçar, não entregava o
teste, já passava a hora. Esperei um pouco. Outra aluna veio ter
comigo. “Quero o meu teste de volta. É que se não recolhe o
dela...”. A Roménia não é Portugal, na minha consulta muitos
doentes contam-me de familiares mais novos que emigraram, sem grande
drama anexo, que estão bem, que talvez não voltem. Mas eu não sou
cirurgião. Ninguém é o outro ninguém. A dificuldade está no
alguém que tentamos ser e, no entanto, o caminho para lá não é fácil
de ver, crescidas as árvores - lá e cá.
Sem comentários:
Enviar um comentário