terça-feira, 22 de novembro de 2016

Quatre-vingt-dix.

Os franceses é que a sabem toda, com aquela coisa do quatre-vingt-dix, como se os oitenta fossem uma espécie de limiar e a partir daí os anos a haver um sobejo, quatre-vingt-un, quatre-vingt-deux...
 
Noventa anos é mesmo muito tempo. E quando ontem me perguntaram se havia algum dvd ou cd que tu, dentro dos teus gostos que assumiram que eu conhecia, tu gostarias de receber, respondi a verdade, que não sabia, e depois menti: disse que não me lembrava de alguma vez ter tido conhecimento de tu com a minha mãe terem alguma vez ido juntos ao cinema. Efectivamente vocês foram uma noite ao cinema, uns tios meus ficaram a tomar conta de mim, a experiência não correu bem, eu expliquei-vos isso na volta. Hoje que penso, como diz a tua neta, nasceste antes do Sunrise do Murnau (27) e do Maria do Mar, do Leitão de Barros (1930). Nasceste meses depois do Vinte e Oito de Maio, e o teu primeiro Presidente da República foi o Marechal Gomes da Costa, que hoje por hoje dá nome a tantas avenidas.
 
Da tua infância nada sei também. Um destes recentes dias - recentes querendo dizer nos últimos anos - em conversa com o teu irmão Mário, este contou-me pequenas peripécias da sua infância, da tua também, portanto. Nesses pouco minutos pude espreitar pela primeira vez o nunca contado, como foi Ovar nos anos trinta, nos anos quarenta, como foram as coisas que eu nunca te perguntei e por isso tu nunca me contaste.
 
Uma história apenas contas uma e outra vez, a do namoros dos teus pais, meus avós, de talho para talho, porque os mesmos onde trabalhavam ficavam na mesma rua. Vamos assumir que se trata de uma história com um final feliz, mais propriamente sete, pois foram sete os filhos que vingaram. E porque vingam os filhos? Porque a má sorte é assumida ao nascer, o chegar a adulto um calhar, uma coincidência, um bafejo da sorte. Dos filhos só tu e o meu tio Guilherme não fizeram do cortar carne profissão, parcial ou completa. Ser talhante, cortar a carne que outros vão comer, é uma profissão peculiar. Começa pelos cheiros. Aos quais me habituei de pequeno. O cheiro da carne crua, nomeadamente da de vaca, é-me agradável. Depois o toque. Pegar nela, escolher o melhor lado para cortar, adivinhar as aponevroses, o fio da carne, de forma a que saiam bons nacos para cozer, para assar, bifes. E antes olhaste e disseste de onde era a carne, a peça pendurada de um gancho na tua imaginação. Chambão, chã-de-dentro, a pá. A rabada, que me ficava na boca ao trincar e eu não gostava dela. Nos supermercados começaram a cortar a carne de uma forma diferente - disseste-me. E eu a pensar, solidário. "que pena!". Quando, uma vez por semestre, compro carne num talho e a cozinho, preparo-me, lavo as mãos, escolho a melhor faca e pego na carne, dou-lhe voltas e voltas, corto e volto a cortar. Como se soubesse.
 
Penso agora que a minha filha pouco ou nada sabe também da minha infância. Talvez a minha seja a tua vergonha, porque a minha infância foi confusa, pequena, escondida. Mas mais um vez engano-me. A tua vergonha não será, certamente, a minha. Para começar, quarenta anos de distância nos separam. Depois seis irmãos. Sei hoje, levei cinquenta e dois anos para o aprender, que coisas minhas há que são tuas, outras da minha mãe, outras minha tão somente. Ninguém copia ninguém. Peça a peça, fui-me reavendo, recentrando. Assim a minha filha que, esquecido o disfarce da cara, nada a mim deve.
 
Numa coisa porém te copio: os cuidados que pela manhã tinhas comigo nos tempos de apanhar o comboio para a faculdade, o acordares-me, o certificares-te que eu acordei, o aqueceres-me o pequeno almoço. Assim mais ou menos faço hoje, quando o turno é meu. Lembro-me porém quando, quase preocupado, me avisavas de como o café pode ser forte, melhor o descafeinado, ainda não te tinhas apercebido como o Porto me tinha feito crescer tão rápido e tão para fora.
 
Não conheço quem, com valia, de ti tenha má opinião. Essa unanimidade exterior à casa confundiu-me em tempos. Hoje sei que é afinal muito cansativo fazer o correcto todos os dias nesta vida sem prémio. Sem prémio, repito. Todos os dias. Mas prémio haverá às vezes, como agora, noventa anos passados, no simples que tens os teus dias. Merecidos dias simples e claros.
 
Falo, ou escrevo, demais. Estendo-me as mais das vezes ao comprido. Hoje também. Uma última coisa há que queria reaprender contigo: a, só, palavra justa. Ou, na sua ausência, o silêncio.

1 comentário:

  1. Gostei muito. Parabéns! Vamos lá a publicar estas páginas tão bem escritas depois de melhor pensadas, do teu blogue.

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