sábado, 11 de março de 2017

Na Margem / En La Orilla por Rafael Chirbes.

Finalmente acabei, Henrique.

Enganamo-nos de propósito quando, ao falar dos tempos de riqueza que passaram, falamos de uma "bolha imobiliária" ou de uma "bolha financeira". A bolha foi do país como um todo, dos países, houve a bolha portuguesa, a irlandesa, a americana - esta imensa, tão ameaçadora -, a islandesa, a grega - uma tragédia (piada fácil)...
Temos nós este particular prazer de podermos comparar pondo-as lado a lado as bolhas portuguesa e espanhola, como nasceram, cresceram, como Portugal agora está a safar-se "disto tudo" pela esquerda, a Espanha pela direita - sim, Podemos, pela direita. Os países portanto incham e desincham, mas as consequências disto tudo nem sempre passam. Preocupa-me mais a Espanha do que Portugal, e isto porque um país é muito mais do que as suas finanças. As finanças portuguesas estão pior, mas a Espanha está muito mais doente. A bolha rebentou e o que resta é um país que é afinal como que uma grande escara, carne viva, ferida que não fecha e não fecha.
Não sabia que Rafael Chirbes morrera em 2015 - o ano em que tu, Henrique, me ofereceste este livro. "Na Margem" foi livro do ano para o Babelia em 2013. E de que trata o livro? Da escara. Do que resta de Espanha. Há um pântano, há a memória. Duas. Da eterna Guerra Civil que em Espanha parece ainda dar mais do que falar, e do ladrilho, do dinheiro fácil, e da correspondente perda das inocências, dos ideais e das possibilidades de um amor limpo, de um olhar claro, de que tudo tenha  alguma lógica e um lampejo de justiça. Chirbes escreve majestaticamente, ou seja, muito bem. Os capítulos sucedem-se lentamente, como lenta pode ser a morte, fornecendo pistas, dados, camadas de conhecimento sobre o mal, todo o mal que tomou conta de um país. Curiosamente há um pântano mas que é a antítese da metáfora fácil - foi o pântano que escondeu os republicanos dos franquistas, é o pântano que num fim (que acontece no início) fornecer uma saída lógica, uma solução (a)final. 
Chirbes consegue páginas de um grande lirismo mas logo a seguir volta à crueldade dos nossos tempos. Luiza Neto Jorge lembrava que "a vida é gesto e o amor é foda". Chirbes reforça que estes tempos são uma sucessão de más fodas ou nem isso. Chirbes tem o cuidado de no fim fugir ás metáforas e ao pessoal: as últimas palavras, o capítulo "Êxodo" lembra cuidadosamente o que aconteceu.

"- Choraremos pelos velhos tempos?
À refeição das dez da manhã, com saladas, conservas e salgados regados com azeite (polvo seco, cavala, finas fatias de moxama e ovas de atum), umas costeletas, uns enchidos, vinho e cerveja, tudo isto rematado com um café e - no meu caso - um bom conhaque (não, a mim não me sirvas whisky como a estes, dá-me antes um Martell da garrafa que tenho aí reservada), segue-se uma tertúlia sem mudar de cadeira, que se prolonga até à hora do vermute (levantamo-nos para esticar um pouco as pernas junto ao balcão? Estou meio entorpecido) e da paella (foda-se, já são horas de almoçar, e se comêssemos aqui também?), o arroz caldoso ou a aletria, que chega quando o relógio dá as três. Em redor da mesa, pedreiros convertidos em promotores imobiliários, proprietários de negócios prósperos, como eu próprio - vidrarias, canalizações, carpintarias, lojas de móveis, armazéns de materiais de construção e de tintas, gente que vive de rendimentos diversos - reunidos em harmoniosa convivência, bons rapazes que almoçam juntos e que ao mesmo tempo recebem - como uma chuva de ouro de uma máquina de moedas - as mais-valias que lhes rendem, hora após hora, cada empregado que se move por detrás de um balcão, cada secretária sentada a um computador, cada pintassilgo - espanhol, peruano, colombiano, marroquino, búlgaro ou romeno - empoleirado num andaime a assentar tijolos. 
(...)
Também eu ouço o tilintar dessa chuva, e é a felicidade perfeita, o verdadeiro paraíso. Claro, homem, digo eu, mas nada de harpas e asas angelicais, nada de sombras e formas de espírito nem de indagações teológicas, não, o nosso paraíso não é o dos católicos, mas antes um paraíso de perfil maometano: guloseimas, carne humana e álcool. O promotor charlatão confessa que passa o dia inteiro a preguiçar, da mesa para a cama e da cama para a mesa, e que, ao fim de cada dia, gosta de fazer contas: duas dezenas de mouiros ou romenos ou conguitos, ou um sortido de gente de diferentes nacionalidades, cumprem oito horas de trabalho cada um, o que dá ao todo 160 horas. Cobro ao cliente - fazendo a média das horas de trabalhadores especializados e não especializados - cerca de quinze euros à hora por cada um: portanto, 2400 euros; pago aos não especializados seis, sete ou oito euros à hora (depende da amizade e da simpatia que lhes tenho, ou do tempo que trabalham para mim; desde que trabalho por conta própria, sem o cabrão do Bertomeu, posso fazer o que me dá na gana, sou eu o patrão) e doze euros aos especializados (é pegar ou largar); ora bem, feitas as contas - somando, como te disse, as horas de especializados e não especializados - , dá uma média de oito euros à hora, o que equivale a um total de 1280 euros, os quais, subtraídos aos 2400, vem a dar 1120 de lucro: ou seja, esta tarde tão agradável, tlim, tlim, tlim, caíram-me no bolso mil cento e picos limpos, o que não é nada mau, sobretudo porque mais de metade desses trabalhadores são clandestinos e com os outros combinei deduzir-lhes do salário líquido a contribuição para a segurança social. A partir deste ponto, perco o fio à meada, porque somar dá muito trabalho."

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