"A doença punha a descoberto os piores aspectos daquele carácter seco e superficial; a mulher visitou-o; como sempre, a sua entrevista acabou com palavras amargas; ela não voltou mais. Trouxeram-lhe o filho, uma bela criança de sete anos, desdentada e risonha; olhou-o com indiferença. Informava-se com avidez das notícias políticas de Roma; interessava-se por elas como jogador, não como homem de Estado. Mas a sua frivolidade continuava a ser uma forma de coragem; despertava de longas tardes de sofrimento ou de torpor para se entregar por completo a uma das suas brilhantes conversações de outrora; aquele rosto molhado de suor sabia ainda sorrir; aquele corpo descarnado erguia-se com graça para receber o médico. Seria até o fim o príncipe de marfim e ouro.
À noite, não podendo dormir, instalava-me no quarto do doente; Céler, que gostava pouco de Lúcio, mas que me é demasiado fiel para não servir com solicitude aqueles que me são caros, dispunha-se a velar a meu lado; subia dos cobertores uma respiração ofegante. Invadia-me uma amargura profunda como o mar; ele nunca me tinha amado; as nossas relações tornaram-se depressa as do filho dissipador e do pai benévolo; esta vida escoara-se sem grandes projectos, sem pensamentos graves, sem paixões ardentes; ele tinha dilapidado os seus anos como um pródigo deita fora moedas de ouro. Apoiara-me a uma parede em ruínas: pensava com cólera nas enormes somas despendidas com a sua adopção, nos trezentos milhões de sestércios distribuídos aos soldados. Num sentido a minha triste sorte acompanhava-me: estava satisfeito o meu velho desejo de dar a Lúcio tudo quanto pode dar-se; mas o Estado não sofreria com isso; mas não me arriscaria a ser desonrado por aquela escolha. Bem no fundo de mim mesmo chegava a temer que ele melhorasse; se por acaso se aguentasse ainda alguns anos, eu não podia legar o império aquela sombra. Sem nunca fazer perguntas, ele parecia penetrar o meu pensamento nesse ponto; os seus olhos seguiam ansiosamente os meus menores gestos; tinha-o nomeado cônsul pela segunda vez; ele inquietava-se por não poder desempenhar as suas funções; a angústia de me desagradar fez piorar o seu estado. Tu Marcellus eris... Repetia para mim estes versos de Virgílio, consagrados ao sobrinho de Augusto, ele também destinado ao império e que a morte arrebatara no caminho. Manibus date lilia plenis... Purpureos spargam flores... O amador de flores não receberia de mim mais que inanes ramos fúnebres.
Julgou-se melhor; quis regressar a Roma. Os médicos, que já não discutiam entre si senão o tempo que lhe restava para viver, aconselharam-me a fazer-lhe a vontade; levei-o, por etapas, para a Villa. A sua apresentação no Senado na qualidade de herdeiro do império devia realizar-se na sessão que se seguiria quase imediatamente ao Ano Novo; o uso queria que ele me dirigisse nessa ocasião um discurso de agradecimento; essa peça de eloquência preocupava-o há meses, limávamos juntos as passagens difíceis. Trabalhava nela durante a manhã das calendas de Janeiro quando lhe sobreveio uma expectoração de sangue; sentiu uma vertigem; apoiou-se às costas da cadeira e fechou os olhos. A morte não foi mais que um atordoamento para aquele ser frívolo. Era o dia do Ano Novo: para não interromper as festas públicas e os regozijos privados, impedi que divulgassem imediatamente a notícia do seu fim; só foi oficialmente anunciada no dia seguinte. Foi enterrado discretamente nos jardins da sua família. Na véspera daquela cerimónia, o Senado enviou-me uma delegação encarregada de me apresentar as condolências e de oferecer a Lúcio as honras divinas a que tinha direito, como filho adoptivo do imperador. Mas eu recusei: todo aquele caso havia já custado demasiado dinheiro ao Estado. Limitei-me a mandar-lhe construir algumas capelas fúnebres, a erigir-lhe estátuas aqui e ali, nos diferentes sítios onde ele tinha vivido: aquele pobre Lúcio não era deus."
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