Desde que me conheço sei o pão
E o corto em companhia.
Por ele me bate o coração,
E em sua dobra quente
Grelava outrora a alegria
De mim e de muita gente.
Uma hastilha de seiva começava-o
Como um fio de luz,
E a eira rasa dava-o
Tal como a rosa de alva a cor produz.
Vinha a nós como o Reino vem na prece,
Sendo feita a vontade ao Lavrador:
Assim numa alma limpa amadurece
A semente de amor.
Era o pão. Chão de pão,
Dizia-se ‑ e era logo;
Caía o gesto à terra, a espiga balouçava,
O tempo, devagar, corria-lhe a sua mão,
E com um pouco de pinho e outro de fogo
A vida clara estava
Naquela combinação.
Hoje, que é pão ainda, e à noite nosso,
Vai-se a cortar, falta-lhe talvez polpa.
Se não parto na mesa o pão que posso
É minha a culpa.
Eu sei o pão de cada dia e trago-o:
Ontem, como amanhã, já hoje mo dão;
Mas, vago, a meio da dentada, trago-o,
E não, não é bem o mesmo, ou então não posso…
Ou pelo menos não é todo nosso
Este que levo à boca, o nosso pão.
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Este poema escreveu-o Vitorino Nemésio e aparece na sua colectânea "O Pão e a Culpa". É dos poemas mais perfeitos da poesia portuguesa do século XX. Descobri Vitorino Nemésio há umas décadas quando Vasco Graça Moura o declarou melhor do que Pessoa (ao mesmo tempo destruia Miguel Torga apelidando-o de "menor"... o mais assassino dos apelidos...). Quem hoje fala de Nemésio? Desmemoriado país este... Ao menos algumas ruas possuem o seu nome, ao menos...
Ele há coincidências...
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