Armando Silva Carvalho, d.n. 1938, é outro grande poeta português. Começou a publicar em 1965. Agora que a idade já pesa, a sua grande capacidade de escárnio e mal dizer - o primeiro livro chamava-se "Lírica Consumível" - desceu um degrau. Em 2008 escreveu um livro notável que dava pelo nome "O Amante Japonês". Os menos atentos não reparariam que o livro falava de um carro.
O mês passado saiu "A Sombra do Mar". O livro começa como o dia começa, cada poema para um momento: o acordar, o espelho, o banho, a toalha do mesmo, o pequeno almoço. Depois o poeta vai para a rua e os poemas encetam a deriva dos temas que o "lá fora" oferece.
Este livro, aberto hoje, parece-me muito bom. Perderei essa impressão quando houver mais leitura?
O último poema:
"Mar e Luar
Banhados pelo luar, o mar e os rochedos transfiguram-se,
as naus e os corvos duplicam-se em fantasmas,
coroadas figuras de espessa imaginação
são matéria viva.
Mas quem não vê a água despeja para os fundos
a multidão dos dias, o grosso das viagens que o corpo imaginou em outros corpos, perdidas,
quase iniciáticas, com direito à fome e ao baraço
público.
A música dos séculos repercute nas rochas,
ligaduras de som agarram a cabeça às massas duras
do tempo, há translações de milénios
nestes estratos, ardidas cidadelas da memória
traduzidas nas grutas.
Quem aborda, incauto, esta paisagem deve precaver-se.
Vertigens na garganta, guelras de batráquio,
a alma enrodilhada no sal, bárbaro o coração,
o corpo essa estéril mania.
Peniche, Março de 2015".
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