sábado, 3 de outubro de 2015

The Hours - Michael Cunningham.

Escrever sobre um livro depois de termos falado do filme é fácil: não é preciso contar a história. E à pergunta se o livro ultrapassa o filme a resposta também é fácil, neste caso
: sim,  e muito.
"The Hours" é ainda a obra mais conhecida de Michael Cunningham. Saiu em 1998 e ganhou o Pulitzer no ano seguinte. A história do filme segue aproximadamente a do livro. Há a criação de alguns momentos de maior dramatismo  - no filme - que no livro são espalhados pela prosa brilhante de Cunningham. E digo brilhante porque me lembra, sim, Virgina Woolf. A prosa de Cunningham é uma sucessão de palavras e palavras e palavras a brilhar e a brilhar, dando-nos todos os detalhes, os olhares, as pessoas qie passam que contam, que desaparecem, como um trabalho de pedraria que se deixa ver em acumulação mas nunca em excesso. Dito isto, só transcrever:





"Beijam-se de novo. Clarissa aconselhará Sally, quando a ocasião parecer certa, a não usar o casaco cor de mostarda.
Enquanto continua a atravessar o átrio pensa, admirada, no prazer que sentiu - quando tinha sido? - há pouco mais de uma hora. Neste momento, às 11.30 de um quente dia de Junho, o átrio de entrada do prédio onde mora lembra uma entrada para o reino dos mortos. A floreira está no seu nicho e os mosaicos castanhos vidrados do chão devolvem silenciosamente, de modo turvo, a cansada luz ocre dos candeeiros. Não, não é exactamente o reino dos mortos, há algo pior do que a morte com a sua promessa de alívio e sono. Há poeira a subir, dias intermináveis e um átrio mudo e quedo, sempre cheio da mesma luz castanha e do cheiro húmido e levemente químico que vai passando, até aparecer alguma coisa mais exacta, pelo odor real da idade e da perda, o fim da esperança. Richard, o seu amante perdido, o seu amigo mais sincero, está a desaparecer na sua doença, na sua insanidade. Richard não a acompanhará, como estava planeado, na velhice.
Clarissa entra no apartamento e sente-se imediata e curiosamente melhor. Um pouco melhor. Tem de pensar na festa. Pelo menos há isso. Este é o seu lar, dela e de Sally, e, apesar de já ali viverem juntas há quase quinze anos, ainda a surpreende a sua beleza e a incrível sorte de ambas. Duas assoalhadas e um jardim em West Village! São ricas, claro, obscenamente ricas pelos padrões mundanos, mas não ricas ricas, não ricas estilo cidade de Nova Iorque. Dispunham de uma certa quantia para gastar e tiveram a sorte de encontrar estas divisões com soalho de tábuas de pinho, esta enfiada de janelas de batente que abrem para um pátio de tijolo onde cresce musgo esmeralda em tinas de pedra pouco fundas e uma pequena fonte circular, uma bandeja de água clara, borbulha em obdiência ao toque de um interruptor. Clarissa leva as flores para a cozinha onde Sally deixou um bilhete - "Almço c/Oliver - esqueci-me de te dizer? - volto às três o mais tardar. XXXXX" - , Clarissa sente-se, de súbito, deslocada." 



"- Vem cá - diz Laura, como diria ao seu filho, e, como se Kitty fosse o seu filho, não espera que lhe obedeça e vai ela ao seu encontro. Agarra-a pelos ombros e, após um certo constrangimento, inclina-se até ficar praticamente de joelhos. Tem consciência da sua estatura, de quanto é alta ao lado de Kitty. Abraça-a.
Kitty hesita e depois deixa-se abraçar. Rende-se. Não chora. Laura sente o abandono, sente-a entregar-se. E pensa: é isto o que um homem sente quando abraça uma mulher.
Kitty passa os braços à roda da cintura de Laura, que está inundada de sentimento, de comoção. Aqui, aqui nos meus braços, estão o medo e a coragem de Kitty, a sua doença. Aqui estão os seus seios. Aqui está o coração resoluto e prático que bate por baixo deles; aqui estão as luzes líquidas do seu ser: luzes rosa-carregado, luzes vermelho-ouro, cintilando, vacilantes, luzes que se congregam e dispersam; aqui está o mais íntimo, o mais profundo de Kitty, o coração debaixo do coração, a essência intangível com que um homem - e logo o Ray! - sonha, pela qual se sente atraído, que procura à noite tão desesperadamente. Aqui está, à luz do dia, nos braços de Laura. Sem ter bem consciência disso, beija Kitty demoradamente no alto da testa. Sente-se inundada pelo perfume dela, pela essência fresca e pura do seu cabelo louro-acastanhado."







E é isto todo o livro. O que é muito bom.


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